sexta-feira, setembro 29, 2006

Crepúsculo

Escrevi este texto há alguns meses. Por isso o atraso da estação. Era para ser um conto. Foi abreviado pela pura falta de inspiração.

Caminho solitário pela beira do rio Guaíba. Uma borboleta azul risca o ar, galopando suavemente com suas asinhas frágeis. Os carros deslocam-se rapidamente. A brisa sopra com o vigor do fim da tarde de outono. Piso intencionalmente em algumas folhas secas para ouvir a canção metálica desta estação. O sol queda aos poucos e é velado por algumas nuvens maldosas.

Do lado de Guaíba, a beira ainda possui sua elegância. Não podemos mais tomar banho de rio como nos tempos de meus avós, as paradas de ônibus precisam ser restauradas, cheiram a mijo, mas a paisagem conserva seu encanto. Ao final das tardes de sol, o céu reproduz um mosaico de cores. Basta divisar os morros de Porto Alegre para enxergar o espetáculo. O espectro começa com um roxo suave, quase sôfrego. Esbarra num vermelho abrandado (travestido de rosa), que se transforma, mais acima, em laranja. Enfraquece gradativamente para um amarelo pálido, quase alvo, que deságua na imensidão azul do céu.

Caminho como sem vontade própria. Caminho instintivamente, desprendido de qualquer autonomia. Movido por algo que minhas pernas tivessem decidido antes mesmo de desenvolverem-se na barriga de minha mãe. Inerente aos meus parcos anos de vida. Paro junto de uma árvore de tronco robusto e incrustado para apreciar o crepúsculo.

O sol morre como deveria: sereno e moroso. Ando tranqüilamente até minha casa. De volta a meus devaneios inúteis. De volta a minhas incongruências irremediáveis. De volta ao quarto mal iluminado pelo abajur de luz desmaiada e débil.

Guilherme

quinta-feira, setembro 28, 2006

Homenagem a um Ilustre Tricolor

* Peço licença para usar termos mais coloquiais e os ditos “nomes feios”. Acho que neste caso acrescenta bastante no texto. Se alguém se sentir incomodado, não prossiga a leitura.


Lembro de estar sentado em uma cadeira da Antártica. Aquelas bem desconfortáveis, gélidas e enferrujadas. Ainda não encostava os pés no chão. Eram minutos intermináveis até chegar a porção de fritas. Já entediado, esperava ele aparecer. Volte e meia, vinha aquele velho barbudo – estilo Ray Connif – soltar uma piadinha sem graça.

-Teu timinho é podre... Tu não ganha de ninguém – caçoava.

As pálpebras ficavam pesadas, olhos cheios d’água e eu dava de ombros. Só de raiva, segurava o choro. Ingênuo ainda, não tinha coragem de responder a altura. Com o tempo, fui me recuperando.

Entre uma piadinha e outra, ofereceu-me um cachorro de presente. Nossa. Um cachorro. O primeiro cachorro. Adorei a idéia. Depois de uma reunião familiar foi escolhido o nome: Marroney. Putz. Em homenagem ao personagem gozado da Loucademia de Polícia. A escolha não me agradava. Enquanto esperava mais um porção de fritas, percebo que ele findava um copo de cerveja e vinha em minha direção. Pensava em dar uma resposta.

-Coloca o nome de Falcão. O jogador do Inter aquele. – sugeriu.

Estava batizado o meu primeiro bicho de estimação. Uma mistura de Pastor Alemão com “Kolley”. Agora, já considerava o Marcos meu amigo.

Os anos foram passando e as discussões aumentando. Quando o Grêmio perdia, fazia o caminho mais longo na volta da Escola só para passar em frente ao Bar do Alemão – ele sempre foi o comandante dos Bebuns – e dar uma corneta.

- Teu time tomou no c..... – me esbaldava
- Vai, vai... tu nunca vai ver teu time ganhar um título nacional... vai pentiá macaco – replicava.

Arremedava dizendo que vi o Inter ser campeão do Brasil em 92, mas, sempre ele vinha com o argumento que o meu time era Internacional somente no nome. Prometia a ele que quando o colorado ganhasse um título de expressão iria pra frente da sua casa pra estourar foguetes contra sua residência. Por anos, segui com esta promessa. Já quando o Grêmio ganhava, voltava pelo trajeto normal.

Nos dias de jogos, ele me aguardava – desde a 1h30 - com suas dose duplas, no Bar do Alemão. Bastava o ônibus do Scaranto - excursão - despontar na Avenida, que ele se preparava com uma toalinha do Grêmio. Rapidamente eu abria a janela colocava a cabeça pra fora:

- Marcossssssssss Vai toma no c...´´´´´´´´´´´´

Faceiro, mostrava o dedo do meio em riste, tremulando sua toalinha azul. Ele ganhava o fim de semana com isso. Eu também. Por muitos e muitos jogos, foi assim.

Hoje, a cadeira no Bar está vazia. A alegria dos bebuns, certamente não é a mesma. Falta a presença do seu líder. Creio que o título da Libertadores veio um pouco tarde. Não penso em soltar foguetes na residência, em respeito a sua esposa. Ela não entenderia. Mas toda vez que passo em frente a casa dele, presto-lhe uma homenagem cantando em pensamento: Ei! Marcos... Vai toma no c...´´´


Fabio

segunda-feira, setembro 25, 2006

Monólogos de um Paranóico

Ele caminha pelas ruas esburacadas da Cidade. Absorto, finge não perceber a árdua realidade ao seu redor. Por vezes, conversa com o “deixa que eu chuto”, enquanto espera o ônibus para a Capital e sente-se bem. Com isso, acredita estar contribuindo à sua maneira, com os menos favorecidos. Deixa ser enganado. É um filho da classe média. Às vezes, fala sozinho. Ensaia frases entrecortadas em meio a suas passadas largas. É egocêntrico. Seu pior defeito - diria ele.

Em uma tarde de julho passado, vivenciou uma situação peculiar. O seu perdido e despretensioso olhar, percorria de longe as tristes e poluídas águas do Guaíba. A temperatura baixa fazia com que sua respiração saísse esfumaçada, tornando o seu foco de visão uma bela paisagem, de certa forma, abstrata. Ao fundo, do outro lado da rua, enxergou um senhor acenando. Cabelos grisalhos, barba feita, parecia o conhecer a anos.

- Ele ta falando comigo? – pensa.

A única expectativa de não ser com ele, deu com os burros n’agua, em instantes. O rapaz que estava ao seu lado, olhava em direção ao idoso e não esboçava nenhuma reação. Parecia não ver ninguém. O que mais o intrigava eram os acenos continuados, mas, em nenhum momento o velho fez menção em ir até onde ele estava.

- Será se esse locão ta morto? Donde ele me conhece? – se cagava.

Não teve coragem de atravessar a rua. E o pior. Não era a primeira vez que acontecia. Outras vezes, pessoas diferentes, o acenaram. Felizes, lhe ofereciam um sorriso tenro e acolhedor. Em nenhum dos casos, houve um contato maior ou aproximação. Parecem apenas supervisioná-lo. De longe. Penso que ele não gosta disso. Apenas segue sua caminhada, com monólogos sussurrados, distraindo-se, tentando não encontrar mais des “conhecidos”.

Fabio

domingo, setembro 24, 2006

A velha sentença

O bem e o mal não existem
Eles sempre te enganaram
Olha pro céu e distingue
Esse azul claro tão opaco

Não diz que o mal é vermelho
O vinho tem gosto tão doce
Menina, prova com zelo
A poesia que eu te trouxe

E agora, o que sobrou?
Eu e você: nós dois
Sobreviventes, sim
Do vale de ilusões

E aquela velha sentença
Eu hoje trago cá no bolso
Menina, quase me esqueço
Dos anos de calabouço

Não deixa o sol lá se pôr (só)
Que a lua vem lhe casar
Pego as estrelas lhes dou um nó
Só pra lhe presentear
(Até me esqueço de chorar)

E agora, o que sobrou?
Eu e você: nós dois
Sobreviventes, sim
Do vale de ilusões

Guilherme

quinta-feira, setembro 21, 2006

Silêncio

A edição de Zero Hora do dia 10 de setembro publicou nas suas páginas 16 e 17 um quadro contendo os gastos, faltas, projetos e variação de patrimônio de todos os deputados da Assembléia Legislativa do Estado. O recordista em gastos de gabinete foi José Sperotto (PFL) - que assumiu o cargo há um ano e nove meses.Foram R$ 257, 8 mil no total.

Como o grosso do eleitorado de Sperotto reside em Guaíba, era esperado que os jornais da cidade ecoassem a informação de ZH e levassem aos seus leitores o valor utilizado pelo parlamentar. Mas a imprensa guaibense silenciou. A única referência ao deputado nos semanários guaibenses foi um anúncio estampado nas capas, com o sorriso fotográfico de Sperotto e a singela frase: "Prometeu, trabalhou e cumpriu".

A atitude da coordenadoria de campanha de Sperotto era presumível. Essa prática é comum entre os candidatos. Respondem ao que foi publicado com silenciosas e simpáticas propagandas. O mais grave de tudo isso é o jornalismo amnésico que O Guaíba, Gazeta Centro-Sul e Folha Guaibense entregaram aos guaibenses na semana passada. Se o objetivo principal deles é vender anúncios, que editem um caderno publicitário; e não se intrometam num terreno tão influente, importante e, necessariamente, transparente como o jornalístico.

Guilherme

domingo, setembro 17, 2006

O Gol da minha Vida

Sentado na garagem da casa da minha noiva, assistia ao jogo Inter e São Paulo, pelo Campeonato Brasileiro. Depois de um fim de semana maravilhoso, almejava terminá-lo com mais uma vitória sobre o atual Campeão do Mundo. Mas sabe como é. Aquele velho ditado: “sorte no amor, azar no jogo”. Entre algumas conversas de cotidiano com a nega, - a partida já estava 2 a 0 para o tricolor paulista - ocorre um lance peculiar e Rogério Ceni sente uma lesão na virilha. Por poucos minutos, a bola parou de rolar. A torcida mesmo com três derrotas em finais este ano, buscava forças para gritar “Tri Campeão”, referindo-se ao número superior de Libertadores conquistadas. Aquele 9 de agosto, no Morumbi, foi marcante para eles. Para mim, também.

Foi naquele 9 de agosto - mês do cachorro louco – que saiu o gol mais importante da minha vida. Por ironia, não estava no estádio. Lembro-me que no início da tarde fui cobrir as ocorrências policiais e na DP o único assunto era o jogo do colorado. Tinha a plena convicção de que se não assassinassem o Maneca, nada mudaria a pauta dos Investigadores. Mas não, a semana foi tranqüila. Sem saber ao certo o que anotava, - meus ouvidos estavam no ligados no radinho do delegado, sintonizado na gaúcha, descrevendo todos os detalhes que antecediam a batalha – prescrevi alguns dados e fui para a Gazeta esperar o micro para a faculdade.

No caminho, o nervosismo aumenta consideravelmente. Já em aula, percebo que não li o texto pedido na aula anterior, e, preocupado, quase me esqueço do jogo. Quase. Dois futuros jornalistas adentram a sala com peitos estufados, desfilando com camisetas do São Paulo. Não me contive. “Gozar com o pal dos outros é foda” – Sem falar nada, pediram licença à professora e sentaram. Hoje, nem me olham. Esta pequena frase me rendeu uma antipatia por todo semestre, quem sabe todo o curso. Enfim.

Passava das 21h45 e a mestre não liberava seus alunos. O assunto em pauta era autores latino-americanos. Quando a classe foi questionada sobre algum escritor uruguaio, resolvi citar – dificilmente falo para toda a turma – o Eduardo Galeano. Solenemente fui reprovado por todos, que queriam ir embora. Bola fora. “Mais algum?” replicou a professora. Então, ao fundo da sala, surge uma voz feminina, quase aos gritos “O Sóbis”. Foi o suficiente para encerrar o dia de estudo. Será que ela imaginava, em poucas horas, aconteceria uma atuação tão brilhante deste garotinho de Erechim?

Voltando para o micro, em passadas largas no estacionamento da Unisinos, escuto a expulsão de um atleta sãopaulino. FDP – festejei sozinho. Os transeuntes, não entenderam bem o que ocorria. Entrando na condução, vou até o último banco e vejo as primeiras imagens da partida. Imagens destorcidas, falhadas, devido à falta de antena. Era difícil enxergar a bola, o rádio me guiava. Me sentia dentro do Cícero Pompeu de Toledo. Coração palpitando perigosamente, um filme de todos os jogos do colorado rodavam sobre meus olhos. Tinha medo. Não conseguia uma troca de conversas coerente. “Fábio, o Inter ta com 3-5-2, ou 4-4 2”, perguntou um colega de micro. “Sei lá por... Não é o momento” respondi, de forma um pouco grosseira. Lacrimejava.

Pintando a América de Vermelho

Bolívar. O beque colorado que me inspirou deixar o cabelo um pouco maior, começou a jogada épica. Em um belo passe tocou para Edinho que, em um apurado lançamento deixou Sóbis frente a frente com Fabão. Desengonçado, quase caindo passou pelo zagueiro e chutou no cantinho. Voei do assento batendo a cabeça no teto. Berrava, berrava, assuntando os colegas de micro. O tiozinho – motorista – liberou o som para todos os passageiros. “Esse gol é tinta vermelha na América”, bradava o locutor, que ficaria conhecido no Brasil inteiro após a narração do segundo gol do Inter, também de Sobis. Extasiado, lembrava da desclassificação contra o Ceará na Copa do Brasil, a derrota para o Bragantino, em 96, da quase segunda divisão, por duas vezes, da derrota roubada do brasileirão do ano passado, e sabia, que este gol era um divisor de águas. O início de um marco histórico para mim, para o Inter e para a metade mais feliz do Rio Grande. Estava acabando essa historinha de Internacional só no nome. Obrigado, Inter. Obrigado, Sóbis.

Esse guri com “...cara de gaúcho, pinta de gaúcho, roupa de gaúcho, parece gaúcho..” se transformou no meu maior ídolo do Internacional - igualando-se ao Fabiano Cachaça.

Contendo as lágrimas, ainda consegui bater a cabeça novamente, festejando o segundo gol, menos de 10 minutos depois. O São Paulo descontou, mas os gremistas não comemoraram. Era o sinal de que estava chegando à nossa hora. Ao chegar em casa, encontro meu pai avermelhando, com certeza, muito mais nervoso que eu. Sem soltar um comentário sobre o jogo, resumi a um sucinto “E aí” e me tranquei no quarto até o final da partida. A batalha estava ganha e o título encaminhado. Mal sabia eu, que sete dias depois, assistiria o melhor jogo da minha vida. Mas o gol. Ah, o gol já estava feito.

Fabio

No vídeo, um especial sobre a conquista colorada. No primeiro trecho, o gol da minha vida.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Experiência Recompensada

Esta matéria eu fiz para a Revista Experiência, da Famecos, semestre passado. No impresso ela teve de ser reduzida. Aqui é reproduzida na íntegra.

O editorialista é figura mítica dentro do jornal. Espécie de patrimônio da empresa. De punhos talhados e escrita apurada, domina a língua portuguesa como poucos na redação. Para tanto, normalmente é alçado ao cargo com idade já avançada e muitos anos de casa. Precisa ser de total confiança da direção. Afinal, a opinião do jornal é transmitida nas linhas de seu texto. Talvez essa abnegação literária seja outro indicativo da necessidade de ele penar alguns anos nas editorias do jornal antes de assumir o posto. Aquele ideal romântico de jornalismo já não corre nas veias e esboçar uma idéia, por vezes contrária às suas, em troca de uma confortável remuneração nem é cogitada como traição aos remotos valores de recém-formado, e sim, uma conseqüência natural do labor bem desempenhado. Para reconhecer um editorialista dentro de uma redação de jornal, basta mirar as cabeças de fios mais desbotados e ralos entre os computadores.

Com mais de 36 anos de profissão, duas Copas do Mundo no currículo e passagem por veículos tradicionais do Estado e do país como Veja, Jornal do Brasil e Correio do Povo, Nilson Souza, editor de Opinião de Zero Hora, é editorialista do jornal há 13 anos. As sobrancelhas hirsutas e o cabelo rareado e branco revelam de cara os 57 anos de vida. Em outra profissão ele já estaria aposentado ou preparando-se para isso. Mas o jornalismo caminha em terrenos mais sinuosos e transversais, e como um bom vinho, o profissional encontra-se amadurecido a ponto de expressar a opinião de um jornal somente depois de muitos anos ou décadas de carreira. Os motivos, Nilson explica:

- É necessária uma bagagem cultural muito grande para comentar sobre os mais diversos assuntos. Além de conhecer e se identificar com o ideário da empresa – argumenta.

Com gestos comedidos, comentando a sua função como se estivesse em uma sessão mediúnica, forçando as pálpebras com a mão direita, ele se esforça para remontar os primeiros anos de faculdade. Já no quarto semestre de curso, é contratado pela Caldas Junior, onde passa a trabalhar no Correio do Povo. Nessa época, submeter-se ao ideal de uma empresa em detrimento de suas crenças nem passava pela cabeça do estudante.

- Como todo jovem, jamais me imaginava nessa função. Tinha aquela idéia de jornalismo anárquico, onde todos comandassem ao mesmo tempo. Com o passar dos anos, a gente nota que concorda com 99% daquilo que o jornal prega – acrescenta seguro.

Amir Domingues, 78 anos, editorialista do Correio do Povo, atende ao telefone. As frases impacientes e lacônicas resumem rapidamente os predicados necessários para exercer seu trabalho. “É preciso uma longa experiência e muita disciplina intelectual”. São 49 anos de Caldas Junior e 17 como editor de Opinião. Ele reconhece que é procurado pelos jornalistas menos experientes para distribuir conselhos e discorrer sobre questões históricas, mas não credita o fato ao seu posto.

- Eles me procuram como os jovens procuram aos mais velhos em qualquer profissão.

Companheiro de Amir na função de editorialista do Correio, Manoel Braga Gastal não chegou ao posto que ocupa como a maioria de seus colegas. Beirando os 90 anos, o jornalista que há 17 foi contratado pela Caldas Junior admite que conhece poucos companheiros de veículo. Pelo simples fato de não comparecer à redação.

- Desde que entrei no Correio eles fazem a deferência de buscar os textos que faço em minha casa - uma simpática morada no bairro Espírito Santo, em Porto Alegre.

Empunhando o gravador, segundo ele, por sentir-se mais confortável para falar, Braga Gastal conduz seu discurso com as palavras sobrepostas de forma metódica e conclusiva. Deixando transparecer a personalidade carregada de linguagem jurídica. Advogado jubilado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), exerceu a profissão por 50 anos. A retórica jurídica foi determinante no seu sucesso como jornalista de opinião, tanto na extinta coluna “Dois dedos de prosa” da rádio Farroupilha, quanto na atual função. Mas o que aponta como grande atributo de um bom editorialista é a percepção aguçada, o olho clínico para escolher a notícia certa a ser abordada.

- Nem sempre a manchete do jornal deve ser escolhida para o editorial. Às vezes uma matéria escondida no cantinho da página pode ser a escolha certa – ensina.

Guilherme

domingo, setembro 03, 2006

Olhos de aborto

Os olhos eram azuis. Um azul denso e harmônico. Os olhos me fitavam aflitos, imprimiam gritos que não entendia, divagavam no silêncio pesado de sua casa. Os olhos percorriam caminhos que desconheço; escapavam aos meus olhos seus desabafos, aos meus ouvidos seus gemidos crus, ao meu olfato apurado seu cheiro de lamento, ao meu tato destro seu corpo cansado e frágil. Aqueles olhos que tão bem conhecia. Aquela íris que decorei ainda criança.

- Era essa a minha dor. Era esse o meu calvário. Era essa minha sina – dizia-me sua boca.

Da rua esgueirava-se pelas frestas nas janelas o vento gelado que chegava lentamente a minhas narinas. Escorria pelo maderume do soalho lustrado, desviava de cadeiras e mesas e alcançava-me. Mais gelado que aquele olhar glacial e intimista, escondido em armadilhas tantas. Ela voltou a sussurrar algumas frases:

- Eu estava estirada, Jonas. Depois de todo aquele veneno destilado dentro de mim, daquela barba espessa e suja me arranhando as costas, daquele bafo rançoso esquentando-me a nunca, Jonas – sua voz começava a ganhar volume e raiva –, daqueles pelos felpudos roçando-me a pele – pausa bruscamente.

A penumbra da sala acentuava o silêncio constrangedor e penoso, principalmente para mim. A ela não sabia o que dizer. Apenas reminiscências muitas de nossas vidas saltavam-me aos olhos: as brincadeiras de criança, o namorico na adolescência, a sexualidade mútua – não estava preparado para aquilo tudo. Lembrava tão somente da vez em que escalamos a raiz sinuosa e descoberta de uma árvore no sítio do vô. As suas pernas magrelas, a destreza de suas mãos de alpinista, a coragem que lhe sobrava em cada poro de sua pele morena e extinguia-se em todos os cantos de meu corpo.
E agora era ela quem me pedia socorro. Aquelas garras felinas mostravam-se frágeis tal qual uma luva de tecido fino, as pernas – mais grossas e melhor desenhadas – perdiam a força, o ânimo; e os olhos – aqueles olhos de menina tonta, aquele olhar de soslaio, azul, quase transparente – gritavam por ajuda.
Depois de segundos passados em branco, uma porta range, sinto sua mão apertar a minha com força e seus dentes cerrarem-se de nervoso. A luz do quarto avança sobre o escurecer da sala e a sombra de meu tio aparece.

- Boa noite, Jonas – acena, enquanto caminha para a cozinha.
- Boa noite, tio – respondo. E fixo meus olhos nele. Ainda não entendo o que aconteceu. Toda aquela solenidade, toda a gravidade que carrega consigo desde que me conheço por gente, faz parecer um acinte o que sua filha acaba de me contar. O tio era o homem mais sério que conhecia; com a barba hirsuta e negra, corpulento, de uma elegância monossilábica e uma educação exemplar. Era ele quem melhor representava o sobrenome do vô. Um nome forte, robusto, austero: Carlos Eduardo Campelo. E agora todas as minhas certezas sobre ele desmoronavam, derrotadas pela dor. Eu realmente preferia que o tio não tivesse feito aquilo. Que fosse apenas um pesadelo de menina insegura.

Ele sorveu o leite frio, guardou a garrafa na geladeira, resmungou algo para nós e encaminhou-se para o quarto.

(Amanhã vai vestir seu terno polido e passado pelas mãos calejadas da tia. Vai caminhar até a garagem de madeira construída ao lado da casa, para dar a partida no Uno vermelho; ganhará as ruas da cidade até chegar ao trabalho. No percurso, alguns-cumprimentos- outros-contratempos. Chegará em casa depois de um dia cansativo e laborioso e receberá o olhar fatigado de minha tia, que finda o jantar. Observará com atenção as estrias que abraçam-lhe e branqueiam-lhe o corpo bronzeado; a anca que antes era larga, agora recolhida e triste; os peitos murchos mirando o chão. Desviando a cabeça, logo elevará os olhos até a filha. Reparará nas suas pernas lisas, nas nádegas arredondadas, na boca fresca e rosada, nos seios fartos e flácidos – mal-cobertos pela blusa marrom que revela os mamilos. Não, ela não puxou à mãe, pensará resoluto).

Agora ela chora. Um choro contido. De incredulidade e resignação. Tomo-lhe o corpo em meus braços e me calo. A lua despenca nessa madrugada de inverno. O frio aumenta aos poucos. O silêncio impera. Evitamos as palavras para que o sol não acorde, para que nada se ilumine, para que o céu aborte o dia como um feto indesejado e o nosso abraço nessa sala escura e triste se eternize.


Guilherme