domingo, setembro 03, 2006

Olhos de aborto

Os olhos eram azuis. Um azul denso e harmônico. Os olhos me fitavam aflitos, imprimiam gritos que não entendia, divagavam no silêncio pesado de sua casa. Os olhos percorriam caminhos que desconheço; escapavam aos meus olhos seus desabafos, aos meus ouvidos seus gemidos crus, ao meu olfato apurado seu cheiro de lamento, ao meu tato destro seu corpo cansado e frágil. Aqueles olhos que tão bem conhecia. Aquela íris que decorei ainda criança.

- Era essa a minha dor. Era esse o meu calvário. Era essa minha sina – dizia-me sua boca.

Da rua esgueirava-se pelas frestas nas janelas o vento gelado que chegava lentamente a minhas narinas. Escorria pelo maderume do soalho lustrado, desviava de cadeiras e mesas e alcançava-me. Mais gelado que aquele olhar glacial e intimista, escondido em armadilhas tantas. Ela voltou a sussurrar algumas frases:

- Eu estava estirada, Jonas. Depois de todo aquele veneno destilado dentro de mim, daquela barba espessa e suja me arranhando as costas, daquele bafo rançoso esquentando-me a nunca, Jonas – sua voz começava a ganhar volume e raiva –, daqueles pelos felpudos roçando-me a pele – pausa bruscamente.

A penumbra da sala acentuava o silêncio constrangedor e penoso, principalmente para mim. A ela não sabia o que dizer. Apenas reminiscências muitas de nossas vidas saltavam-me aos olhos: as brincadeiras de criança, o namorico na adolescência, a sexualidade mútua – não estava preparado para aquilo tudo. Lembrava tão somente da vez em que escalamos a raiz sinuosa e descoberta de uma árvore no sítio do vô. As suas pernas magrelas, a destreza de suas mãos de alpinista, a coragem que lhe sobrava em cada poro de sua pele morena e extinguia-se em todos os cantos de meu corpo.
E agora era ela quem me pedia socorro. Aquelas garras felinas mostravam-se frágeis tal qual uma luva de tecido fino, as pernas – mais grossas e melhor desenhadas – perdiam a força, o ânimo; e os olhos – aqueles olhos de menina tonta, aquele olhar de soslaio, azul, quase transparente – gritavam por ajuda.
Depois de segundos passados em branco, uma porta range, sinto sua mão apertar a minha com força e seus dentes cerrarem-se de nervoso. A luz do quarto avança sobre o escurecer da sala e a sombra de meu tio aparece.

- Boa noite, Jonas – acena, enquanto caminha para a cozinha.
- Boa noite, tio – respondo. E fixo meus olhos nele. Ainda não entendo o que aconteceu. Toda aquela solenidade, toda a gravidade que carrega consigo desde que me conheço por gente, faz parecer um acinte o que sua filha acaba de me contar. O tio era o homem mais sério que conhecia; com a barba hirsuta e negra, corpulento, de uma elegância monossilábica e uma educação exemplar. Era ele quem melhor representava o sobrenome do vô. Um nome forte, robusto, austero: Carlos Eduardo Campelo. E agora todas as minhas certezas sobre ele desmoronavam, derrotadas pela dor. Eu realmente preferia que o tio não tivesse feito aquilo. Que fosse apenas um pesadelo de menina insegura.

Ele sorveu o leite frio, guardou a garrafa na geladeira, resmungou algo para nós e encaminhou-se para o quarto.

(Amanhã vai vestir seu terno polido e passado pelas mãos calejadas da tia. Vai caminhar até a garagem de madeira construída ao lado da casa, para dar a partida no Uno vermelho; ganhará as ruas da cidade até chegar ao trabalho. No percurso, alguns-cumprimentos- outros-contratempos. Chegará em casa depois de um dia cansativo e laborioso e receberá o olhar fatigado de minha tia, que finda o jantar. Observará com atenção as estrias que abraçam-lhe e branqueiam-lhe o corpo bronzeado; a anca que antes era larga, agora recolhida e triste; os peitos murchos mirando o chão. Desviando a cabeça, logo elevará os olhos até a filha. Reparará nas suas pernas lisas, nas nádegas arredondadas, na boca fresca e rosada, nos seios fartos e flácidos – mal-cobertos pela blusa marrom que revela os mamilos. Não, ela não puxou à mãe, pensará resoluto).

Agora ela chora. Um choro contido. De incredulidade e resignação. Tomo-lhe o corpo em meus braços e me calo. A lua despenca nessa madrugada de inverno. O frio aumenta aos poucos. O silêncio impera. Evitamos as palavras para que o sol não acorde, para que nada se ilumine, para que o céu aborte o dia como um feto indesejado e o nosso abraço nessa sala escura e triste se eternize.


Guilherme

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial