terça-feira, agosto 08, 2006

A menina

Olhem para aquela criança desbotada sob o sinal. Olhem para aquela criança de olhar vazio, pés descalços e bainhas das calças carcomidas. Aquela criança que mendiga um real, dois. Aquele bichinho que ainda carrega traços humanos. Aquele amontoado de poucas carnes, muitos ossos e fome. Muita fome. Acelere o carro. Estaque o automóvel no sinal vermelho. Debrie a primeira marcha esperando a sinalização para seguir. Agora, vire o rosto. Aí. Esse é o retrato de seu descaso.

Ela acorda quando o sol nasce. Calça os chinelos tamanho trinta e dois; eles não resistem ao cimento da calçada e rasgam pouco depois. Veste o abrigo tamanho treze anos, que ainda fica um pouco grande, e caminha seis quilômetros da Nova Guaíba até o Centro. Aquece os dedos com baforadas esparsas e parte para a humilhação. "Um trocado, tio?!". Pede e pede. Procura o pote que deixou escondido no final da tarde de ontem. Cadê? Aqui. Leva-o até o nariz e respira com avidez. Cola. Muita cola. Caminha tonta pela faixa de segurança. Está quase em frente à Pompéia. A fome já passou. O frio, não. Pratica um pouco mais de mendicância. Recebe alguns olhares de desprezo, outros de pura indiferença. Ao avistar a esquina da São José com a Vinte de Setembro, surpreende-se com uma caminhonete Toyota reluzente que dobra naquele momento.

Observa as suas curvas perfeitas, a prata bem tratada, os pneus negros e polidos. O automóvel encosta exatamente ao seu lado. Transforma-se num espelho. A menina se olha. Se toca. Se vê na Toyota. A Toyota é o espelho onde ela redescobre o seu rosto - envelhecido e triste. Ela redescobre os dentes amarelados e desparelhos. Ela redescobre os cachos pretos de seus cabelos - engrossados pela sujeira e falta de banho. Ela redescobre-se por completo, em segundos renasce. Por pouco tempo. O carro solta um apito alerta. Os vidros automaticamente elevam-se. Uma senhora elegante e longilínea, com o rosto coberto pelos óculos escuros e expressão nauseabunda, dirige-se ao brigadeano mais próximo. Como uma empregada doméstica competente que é, ele afasta a sujeira travestida de menina - de olhos tristes e grossos fios de cabelo - para longe da Toyota. Que brilha como um diamante no sol do meio-dia que vigia Guaíba de cima. Como um olho que a todos vê. Quase todos. A menina recosta-se na sombra mais próxima. Senta-se sobre a calçada irregular e inala com vontade seu pote de cola.

Guilherme

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Muito Boa, meu caro pré-formando em Jornal, Guilherme Lessa Bica...
Vamo Inter...Vamo Inter...

10:51 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Triste mas é a nossa realidade né Gui? O reflexo de um país mau governado. Muito bom!Bjos

12:08 AM  

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