segunda-feira, janeiro 29, 2007

A guria da minha vida

Ela gosta de mim e isso é o que mais me impressiona nela. Ela chega com a sua mão de travesseiro macio e joga pra cima de mim o cabelo de algodão doce que desmancha de tão liso e cheiroso que é em qualquer objeto sólido que ele toca. E ela diz que eu sou o cara da vida dela e me beija e ri das piadas engraçadas que eu conto e das sem graça também. E eu recolho o corpo dela nos meus braços e aperto com a força de quem vai ficar sem apertar durante um mês, mesmo sabendo que amanhã eu vou entrar pela cozinha, dar um beijo na bochecha da minha sogra, cumprimentar meu sogro e atravessar a porta para vê-la descansar no sofá e me estender o seu sorriso de satisfação caramelada.

E ela fala que a saudade parecia uma lomba tão íngreme que nem a mais avançada das bicicletas, pedalada pelo mais hábil dos ciclistas conseguiria vencer. E eu limpo o seu rosto de alguns fios de cabelo caídos sobre os olhos e digo que se fosse preciso chegar ao alto desta lomba a pé e sob um sol escaldante eu iria mesmo assim; claro que uma coca bem gelada ajudaria, ressalvo. E ela ri de mais essa piada sem graça e descubro os dentes grandes e brancos da sua boca.

E outro dia eu fiquei só olhando pra ela enquanto dormia. E me deu uma alegria estúpida, uma inquietação paralítica que até faltou ar. E eu fiquei ali só olhando o lábio inferior dela que é maior do que o superior respirar tranqüilo, e eu fiquei olhando os sinais que pontilham os braços e parecem gotinhas de chocolate e eu fiquei olhando até a falta de ar passar e eu pegar no sono de vez.

E de vez em quando eu falo pra ela que ela é a guria da minha vida, mas ela finge que não acredita com aquele olhar de incredulidade apaixonada e eu repito tudo outra vez com a certeza de que ela já havia acreditado na primeira tentativa só pra ver as pálpebras dela se moverem e aquele olhar de soslaio me acertar de novo.

E aí eu abraço ela e ela me abraça até que as forças nos faltem e só consigamos nos beijar. Um beijo doce, o dela. Com gosto de caramelo e sorvete napolitano.

Guilherme

domingo, janeiro 07, 2007

olhos de censura

Chego numa guria e ela me dá o fora. Chego noutra e me trova que tem namorado. Assim não dá. Vai se fudê. Tomo mais uma cerveja. Ela molha meu bigode ralo e gela minha cabeça que tava estourando. Suava pra caralho. Essa porra desse pagode é muito apertado. Entro numa roda de conhecidas. Encaro uma delas. Cabelo loiro, olhos de ingenuidade cínica, peitos generosos e pernas nuas. Qué dançá? Ela aceita. Não sei dançar; e tô cagando. Começo a baixar a mão. Ela não liga. Roço minha barba de pêlo falho em seu pescoço. Os nossos passos destoam e a pista tá muito cheia. Muda de música e continuamos ali, suando e errando. Convido ela pra dar uma volta, passar no posto, ver o movimento. Me dispensa com um suspiro de enfado, e resolvo dar uma banda.

Na saída ainda encontro um abobado que me abraça e me chama de amigão. Começa a enumerar as minhas qualidades, me apertando com os braços cultivados na academia. Esses caras não têm muita noção da força que adquirem. Há algumas semanas assisti a um deles conversando com uma guria numa festa. Empunhava um copo plástico recheado de ceva na mão direita. De repente, ele amassou involuntariamente o copo e banhou sua amiga. Fez uma cara de mau pra quem o rodeava e falou pra ela que tava quente mesmo, era bom algo que refrescasse.

Mas o retardado continuava me alugando. Eu não sabia mais o que fazer. Queria deixar logo aquele pagode de merda e ligar pra Cléo e saber se ainda rolava alguma coisa. Não queria dormir com o saco cheio de novo. Aí uma conhecida do cara, que estava vomitando perto da saída, gritou e veio na direção dele e começou a falar algumas besteiras. Aproveitei a oportunidade e larguei fora.

Cheguei no posto e o movimento tava fraco. Três pitt boys de camisas moldando o corpo bebiam energéticos e se socavam ao mesmo tempo. Parei o corsa do outro lado e desci pra comprar uma ceva. O atendente, meio assustado com o gritaria da rua, livrou-se de mim rapidamente. Voltei para o carro e liguei o rádio. Coloquei o cd do Led a uma altura razoável, para não escutar o relinchar daqueles três. Nem bem o Jimmy Page iniciou o solo estridente de sua guitarra, um dos retardados avançou o olhar sobre mim. Continuei sorvendo a polar e aumentei um pouco o som. Então todos franziram a testa e estufaram o peito. Tô cagando, ballbuciei. Até que eles não aguentaram. O de blusa vermelha com a cara do Che estampando o peito pulou para dentro da Toyota cabine dupla e deu play no rádio. Aquela musiquinha repetitiva que se escuta em raves foi irradiada e suprimiu a voz de Robert Plant. Opressores e orpimido. Nada mais natural.

Ligo pra Cléo. Tava dormindo. Já são três e meia da manhã!, ela diz. E daí?! Insisto até ela aceitar. Manobro o carro em frente a sua casa dentro de minutos. Estou bêbado. Suado. Cansado. Fedendo. Barbudo: e mesmo assim ela quer dar pra mim. Enquanto eu passo de corsa acompanhado de uma guria na frente do posto, os três idiotas rebolam num ritmo atrofiado sob o som do bate-estaca. Buzino pra eles. Eles abanam. Quando veêm que sou eu mandando à merda, contraem os braços e vociferam alguns palavrões imprecisos. Tô cagando! Acelero o carro para não haver chance nenhuma de saírem atrás, e baixo o vidro pra ver se o vento me tira um pouco do porre. Nem sei se consigo comer a Cléo direito.

Rodamos durante algum tempo enquanto ela me conta como foi seu dia de trabalho. Eu gosto da voz dela. Talvez o corpo não me atraia sempre. Normalmente quando ligo é nesse horário, e pela falta de companhia melhor. Mas o jeito como me trata; a gratuidade de sua bondade e a pele clara e asseada de um frescor que parece recém ter saido do chuveiro também me deixam maluco. Encostamos numa área afastada, próxima a uns sítios, a alguns quilômetros do centro. Estaciono ao pé de um poste de lâmpada fraca. Reclino os bancos com a habilidade proveniente da repetição. O álcool acumulado não chega a atrapalhar. Ela tenta balbuciar mais algumas palavras: você sempre me esquece depois disso. Eu sei, respondo impaciente. A calça jeans da Cléo já está no banco traseiro. Termino de me despir e nos enrolamos entre cintos de segurança, freio de mão, direção e porta-luvas. A buzina dispara. Alguns gemidos curtos em meus ouvidos. Os vidros embaçam e o carro balança num dançar que aumenta gradualmente. Tudo acaba muito mais rápido do que o esperado. Ela se desculpa por isso. "Sinto muito, Carlos". Aceito o pedido e partimos.

Levo ela em casa. Passo na beira pra apreciar a tranqüilidade da madrugada e rir dos bêbados que esperam mais um nascer do sol. Ligo novamente o cd do Led. Agora sem qualquer obstáculo para me impedir de receber a mensagem de Plant. O corsa avança pelo paralelepípedo irregular que leva ao meu apartamento. As ruas estão vazias. Os primeiros raios de sábado despontam sobre os morros de Porto Alegre. Ainda bem que o fim-de-semana tá só começando.

Guilherme