Liberdade - parte dois
Aquilo tudo que ela falou, e na velocidade peculiar com que Lívia ritmava suas intervenções sempre seguras, me deixou um pouco tonto. Por isso hesitei alguns segundos até assentir ao seu pedido. Logo estávamos na beira. Carro parado junto do calçadão. Todo o Guaíba escurecido a minha frente e uma gostosa e provável ninfomaníaca ao meu lado. Pra que tu me trouxe aqui?, ela disse. Não sei, acho que foi pra contrastar com aquele ambiente tão pesado que a gente tava, toda a mentira que tava lá, sabe? Não dá pra ter nenhuma conversa normal num ambiente como aquele, com pessoas alaranjadas, na verdade eu ouvi menos da metade do que tu me falou lá na festa, eu disse. Ela riu e disse Esse lugar é bonito, dá uma paz tão grande que até assusta. É, deve ser a síndrome do papel em branco*, eu disse. Que isso?, ela disse. Um amigo meu criou uma teoria (hipótese, obviamente, jamais comprovada cientificamente e ilustrada de forma superestimada para ratificar a crítica politicamente correta debruçada sobre as conseqüências que o atual mercado de trabalho produz sobre parcela substancial da mão de obra a caminho da insanidade) de que as pessoas assumem a pressa para não serem obrigadas a pensar, estão tão automatizadas em suas atividades e as realizam numa velocidade oportuna para o andamento da empresa ou escritório ou seja lá o que for que se receberem a tarefa de sentarem em frente a uma mesa, municiadas apenas de um lápis e uma folha de papel em branco, com a singela obrigação de criar, desenhar qualquer coisa, um risco, uma bola, qualquer porcaria de coisa, com o tempo que precisar, livre de qualquer cobrança estética e sem nenhuma restrição imposta hierarquicamente, desrespeitando sua habitual subordinação, ficará imóvel por cinco minutos, examinará as paredes do escritório – a essa altura com as têmporas umedecidas pelo nervosismo, o coração a galope e a garganta árida, invejando os colegas que imprimem a cavalgada diária que a rotina de trabalho ensinou –, caminhará tropegamente até a janela sob o olhar curioso dos mesmos colegas e se jogará para a liberdade do suicídio, uma libertação ao contrário, que a liberta da própria liberdade que o dever do lápis e papel impunha.
Terminei um tanto confuso com tudo o que tinha falado e com medo de parecer tedioso. Eu gostei disso, ela me acalmou. Fiquei olhando pra ela por uns bons minutos, com a resolução de que aquela noite não precisava mais acabar e que permaneceria ali por tempo indeterminado, desde que ela se mantivesse ao meu lado. Vamos caminhar, tá um vento tão bom na rua, olha esse céu!, Lívia me chamou.
Subimos para o calçadão, e só fui acordar para a realidade quando um abobado passou voando de carro, irradiando uma música irritante a toda altura, fazendo tremer os prédios, os carros e o asfalto ao redor. Mas logo ele se foi. Deixou vestígios apenas num saco plástico embalado pelo vento que o automóvel forneceu, além de algumas folhas que dançavam cada vez mais vagarosas. Olhei para Lívia, olheiras suaves do trago, rosto franco e riso bobo, as pernas carecendo da firmeza que somente a sobriedade garante. Ela me puxa pelo braço e me abraça. Andamos pela beira vazia. Cuidei o relógio e vi que ainda faltava muito para amanhecer. Ela trouxe o corpo pra mais perto de mim e tive uma sensação boa, de paz. Sensação tão silenciosa quanto uma folha em branco. Eu já gosto de ficar contigo, Lívia. A gente repousou algumas horas por lá, caminhando e trovando diálogos intermináveis e delírios embriagados. Não havia mais pessoas alaranjadas, não havia mais romarias cínicas, acidez no estômago, nada. A vida – com exceção de uns minguados bêbados incautos, outros motoristas surdos e as restantes seis bilhões de pessoas que andam perdidas ou achadas por aí, lá do outro lado desse rio que a madrugada esconde – havia se tornado mais simples.
* Maiores explicações e aprofundamentos teóricos, estéticos ou metafísicos com Pedro Schenkel, o criador (culpado) da (pela) teoria.
Guilherme
Terminei um tanto confuso com tudo o que tinha falado e com medo de parecer tedioso. Eu gostei disso, ela me acalmou. Fiquei olhando pra ela por uns bons minutos, com a resolução de que aquela noite não precisava mais acabar e que permaneceria ali por tempo indeterminado, desde que ela se mantivesse ao meu lado. Vamos caminhar, tá um vento tão bom na rua, olha esse céu!, Lívia me chamou.
Subimos para o calçadão, e só fui acordar para a realidade quando um abobado passou voando de carro, irradiando uma música irritante a toda altura, fazendo tremer os prédios, os carros e o asfalto ao redor. Mas logo ele se foi. Deixou vestígios apenas num saco plástico embalado pelo vento que o automóvel forneceu, além de algumas folhas que dançavam cada vez mais vagarosas. Olhei para Lívia, olheiras suaves do trago, rosto franco e riso bobo, as pernas carecendo da firmeza que somente a sobriedade garante. Ela me puxa pelo braço e me abraça. Andamos pela beira vazia. Cuidei o relógio e vi que ainda faltava muito para amanhecer. Ela trouxe o corpo pra mais perto de mim e tive uma sensação boa, de paz. Sensação tão silenciosa quanto uma folha em branco. Eu já gosto de ficar contigo, Lívia. A gente repousou algumas horas por lá, caminhando e trovando diálogos intermináveis e delírios embriagados. Não havia mais pessoas alaranjadas, não havia mais romarias cínicas, acidez no estômago, nada. A vida – com exceção de uns minguados bêbados incautos, outros motoristas surdos e as restantes seis bilhões de pessoas que andam perdidas ou achadas por aí, lá do outro lado desse rio que a madrugada esconde – havia se tornado mais simples.
* Maiores explicações e aprofundamentos teóricos, estéticos ou metafísicos com Pedro Schenkel, o criador (culpado) da (pela) teoria.
Guilherme
3 Comentários:
Acho que os três leitores estão tímidos.
Vou deixar um comment pra abrir o baile..
Mto bom o texto...
Fabio
Valeu.
Muito bem escrito o textinho...
Estão ficando cada vez mais vivas as tuas descrições...
A arte de criar assusta hem...
Um abração aos amigos...
Pedro...
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