sexta-feira, maio 25, 2007

primeira pessoa - parte um

Este conto ficou um tanto longo para publicar num blog. Por isso, dividi ele em duas partes. Aí vai a primeira:

Marcelo usava barba. Uma barba espessa e castanha, como o cabelo desgrenhado, emprestando um ar de oriente-médio ao seu rosto magro. Parecia talhado, o rosto. A machado. Não tinha as curvas das caras comuns. Era anguloso, naturalmente deformado. Uma deformidade justaposta e, dentro do campo que compreende as matérias feias, normal. Mas os olhos de Marcelo pendiam perdidos no meio daquele conjunto tumultuado, transmitindo doses módicas de tranqüilidade, acolhidos pelo caos facial do dono. E foi essa paz que prendeu Ana por mais um tempo na parada. O T7 encostou na calçada, algumas poucas pessoas aglomeraram-se na porta, o cobrador assobiou fino para o motorista e o ônibus de Ana se foi, com ela ainda em pé ao lado de Marcelo. Somente os dois ali. Era tardinha de sexta-feira. Feriado municipal. E toda a pressa que passava por eles, a pressa do trânsito que mesmo vazio ainda é apressado, não conseguia contagiá-los.

Ela ensaiou um cumprimento encabulado, com um leve movimento de cabeça. Marcelo simulou ignorá-la, porque jamais recebia cumprimentos encabulados com leves movimentos de cabeça de mulheres tão bonitas como a que estava ao seu lado. Ana teve de ser mais ostensiva. Pra onde tu vai?, arriscou. Ele coçou a barba, revelando um cacoete antigo que encena sempre que se depara com uma situação constrangedora. Pro centro, respondeu quase sussurrando, pra que não fosse ouvido e abreviasse o diálogo e parasse de suar e entrasse logo no Campus Ipiranga que o levaria para casa e para a bonança solitária em seu apartamento. Eu também, Ana mentiu. O que implicou em nova preocupação para Marcelo: ela provavelmente sentaria junto dele, já que naquele horário o ônibus estaria vazio; ele teria de sustentar uma conversa de no mínimo quinze minutos com uma desconhecida. Isso se o trânsito não estiver trancado, o que era penoso demais para quem prioriza palavras monossilábicas em seu vocabulário rotineiro.

Mas a pequena viagem não foi tão ruim quanto o previsto. Ana ocupou quase a totalidade do tempo com um resumo de sua vida. Criada numa família de classe média bem estruturada, sempre estudou em colégio particular e passou facilmente para medicina na federal. Ainda estava no terceiro semestre e bastante insatisfeita com o curso. Dividia os dias entre o estágio de secretária no consultório do pai, as aulas na faculdade, a leitura de contistas russos e a vegetação etílica em frente à televisão enquanto assiste a filmes do Costa-Gavras e do Almodóvar, antes de desmaiar de sono, e essas últimas palavras denotavam um certo pedantismo para Marcelo. Mas o cabelo cor de laranja, o moletom de listras horizontais revezando azul e verde, a pele branca e os lábios sempre úmidos, irresistivelmente úmidos – isso que ele observou e certificou-se de que a língua não os molhava em momento algum, e tampouco havia indícios de batom, o que era ainda mais atraente –, e munidos de uma coloração que caminhava entre o vermelho e o rosa bastaram para que o desconforto e a desconfiança passassem.

O monólogo de Ana prosseguiria, não fosse a interrupção provocada por seu interlocutor silencioso que apontou um prédio algumas quadras à frente e disse que morava ali. Eles desceram, o que surpreendeu Marcelo, já que não esperava companhia para o apartamento. Não se acostumara com isso nos últimos meses. Era sempre a mesma rotina: livros, cinema, aula, livros, um bico na revista do Carlos, um texto publicado no site do Marcos, livros, aula, cinema e, uma vez lá que outra, uma cerveja na Cidade Baixa, quase sempre só: porque o movimento incessante e a verborragia irritante daqueles estudantes de comunicação, sociologia, história, filosofia, e outras ciências humanas que Marcelo não se lembra no momento era demais para o ouvido acostumado com o som do silêncio. O que garantia tempo de sobra para sentar no banco da praça em frente ao prédio e ficar olhando as pessoas passarem: agrupadas, sozinhas, algumas correndo, outras podres-de-bêbadas, e anotar tudo o que via para escrever seus contos.


Guilherme

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