Liberdade - parte um
Não foi dessa vez que desistimos do blog. O intervalo foi longo, mas é agora abreviado. Publico esse conto em duas partes. Ficou extenso para colocá-lo por inteiro numa só postagem.
Essa queimação no estômago ainda me derruba. A seqüência obstinada de tragos que tomei nesta última semana começa a deixar vestígios físicos. Me movimento com mais lentidão, o que altera a rotina de todas as minhas atividades. Um fastio prolongado instalou-se em minha barriga e inibe drasticamente o consumo de alimentos. Por isso as quatro latinhas que bebi neste aniversário começam a causar-me uma náusea tímida, mas tenaz. Há uma guria ao meu lado que fala com uma voz de quem já tomou vodca demais. Ela me chama pelo nome sem eu nunca tê-la visto antes. Inclusive pelo apelido, duas vezes. Faz seguramente quinze minutos que pronuncia um discurso sem vírgulas aparentes. Resolvo aguçar o ouvido e escutar um pouco do latido dela. Ela fala Eu faço facul na Ulbra e estágio no banco e dou umas bandas de vez em quando mas essa galera de Guaíba tá meio fraca né bruxo? Até fiquei surpresa de encontrar alguém mais legal e tal que nem tu bruxo! Tava cansada de rodar e rodar e rodar e vai no posto e vai na beira e vai no pagode e nada de um cara bacana gato e tal bruxo!
O monólogo dela continuava com discretos movimentos de cabeça que eu empreendia apenas para mantê-la certa de minha audição - artimanha acionada em virtude dos dotes físicos que minha interlocutora possuía. Altura média de mulher, cabelos pretos retintos e uns olhos cor de piscina bem limpa, recém aspirada; curvas harmônicas e um rosto de atriz iniciante da rede globo em novelinha mediana. Devia conhecer pouca gente no local e observou-me conversando com uns poucos otários inofensivos que desfilam os corpos malhados exaustivamente – mesmo quando a temperatura recomenda o uso de tecidos mais quentes – e distribuem comentários batidos e repetitivos sobre canos de descarga e manobras de skate; e com algumas putas de ocasião no encalço de um companheiro dono de carro amplo e caro, para mostrarem-se no posto ou na beira. Sempre vale a pena palmilhar a romaria cínica entre essas pessoas numa festa. Circular um pouco e elogiar o Audi prata recém adquirido pelo dono da casa. Dar alguns passos para o lado e adular a namorada dele com adjetivos positivamente rasteiros: comentando sobre a naturalidade do bronzeado dela em pleno mês de julho – mesmo que a pele esteja tão laranja quanto um sol hepático de fim de tarde. Empresta um ar de sujeito inserido socialmente a quem o faz. E eu começava a colher os frutos disso.
A azia ainda me agastava a paciência e somavam-se a ela as trinta e cinco vezes que aquela guria me chamara até agora de bruxo – a essa altura já havia me dito que seu nome era Lívia e que não gostava de cachorros, morava em apartamento e não acalentava escrúpulos sexuais; palavras, essas, todas minhas; as que ela usou certamente caminham em terreno mais coloquial e chulo. Apesar da posição desconfortável que me encontrava, Lívia garantiu mais alguns minutos de minha atenção ao assumir-se ninfomaniacamente inescrupulosa. Até me animou a comentar Eu acho que já te vi por aí, talvez na beira ou numa outra festa. Isso bastou para ela recomeçar o desfile de frases com intervalos estreitos: Saí de casa bem cedo ainda com dezesseis e logo comecei a trabalhar. Nunca pedi um tostão pro meu pai aquele cachorro que não merece a mulher que tem. Tu fuma? Tou sem fogo. Que merda – esse trecho ela interpretou com uma careta insatisfeita que me fez esquecer por um momento o vocábulo bruxo, a queimação no estômago, aquela festa estéril e entregar-me todo naquela boca entortada temporariamente pela abstinência do cigarro –, tenho que me fudê mesmo. Desculpa às vezes fico meio desbocada. Como eu tava te dizendo eu sou prima do cara que tá dando a festa. Não precisa me olhar desse jeito. Eu sei que ele é um idiota. Tou aqui porque não tinha nada melhor pra fazer e ainda dei sorte de te encontrar. Vi que tu fica só observando e tirando silenciosamente todo mundo que tá aqui pra otário. Se acha esperto e inteligente né? E eu sei que até deve ser as duas coisas. Mas eu acho que essa tua esperteza pode esbarrar às vezes na amargura. Tu não tem o corpo do meu primo não tem o carro dele nem a namorada alaranjada mas gostosa dele. Aí fica puxando o saco e bebendo de graça e ainda tem a sorte de me encontrar por aqui. Calma. Tou falando isso só pra te deixar mal. Acho que consegui. Era só brincadeira. Me leva embora daqui!
Guilherme
Essa queimação no estômago ainda me derruba. A seqüência obstinada de tragos que tomei nesta última semana começa a deixar vestígios físicos. Me movimento com mais lentidão, o que altera a rotina de todas as minhas atividades. Um fastio prolongado instalou-se em minha barriga e inibe drasticamente o consumo de alimentos. Por isso as quatro latinhas que bebi neste aniversário começam a causar-me uma náusea tímida, mas tenaz. Há uma guria ao meu lado que fala com uma voz de quem já tomou vodca demais. Ela me chama pelo nome sem eu nunca tê-la visto antes. Inclusive pelo apelido, duas vezes. Faz seguramente quinze minutos que pronuncia um discurso sem vírgulas aparentes. Resolvo aguçar o ouvido e escutar um pouco do latido dela. Ela fala Eu faço facul na Ulbra e estágio no banco e dou umas bandas de vez em quando mas essa galera de Guaíba tá meio fraca né bruxo? Até fiquei surpresa de encontrar alguém mais legal e tal que nem tu bruxo! Tava cansada de rodar e rodar e rodar e vai no posto e vai na beira e vai no pagode e nada de um cara bacana gato e tal bruxo!
O monólogo dela continuava com discretos movimentos de cabeça que eu empreendia apenas para mantê-la certa de minha audição - artimanha acionada em virtude dos dotes físicos que minha interlocutora possuía. Altura média de mulher, cabelos pretos retintos e uns olhos cor de piscina bem limpa, recém aspirada; curvas harmônicas e um rosto de atriz iniciante da rede globo em novelinha mediana. Devia conhecer pouca gente no local e observou-me conversando com uns poucos otários inofensivos que desfilam os corpos malhados exaustivamente – mesmo quando a temperatura recomenda o uso de tecidos mais quentes – e distribuem comentários batidos e repetitivos sobre canos de descarga e manobras de skate; e com algumas putas de ocasião no encalço de um companheiro dono de carro amplo e caro, para mostrarem-se no posto ou na beira. Sempre vale a pena palmilhar a romaria cínica entre essas pessoas numa festa. Circular um pouco e elogiar o Audi prata recém adquirido pelo dono da casa. Dar alguns passos para o lado e adular a namorada dele com adjetivos positivamente rasteiros: comentando sobre a naturalidade do bronzeado dela em pleno mês de julho – mesmo que a pele esteja tão laranja quanto um sol hepático de fim de tarde. Empresta um ar de sujeito inserido socialmente a quem o faz. E eu começava a colher os frutos disso.
A azia ainda me agastava a paciência e somavam-se a ela as trinta e cinco vezes que aquela guria me chamara até agora de bruxo – a essa altura já havia me dito que seu nome era Lívia e que não gostava de cachorros, morava em apartamento e não acalentava escrúpulos sexuais; palavras, essas, todas minhas; as que ela usou certamente caminham em terreno mais coloquial e chulo. Apesar da posição desconfortável que me encontrava, Lívia garantiu mais alguns minutos de minha atenção ao assumir-se ninfomaniacamente inescrupulosa. Até me animou a comentar Eu acho que já te vi por aí, talvez na beira ou numa outra festa. Isso bastou para ela recomeçar o desfile de frases com intervalos estreitos: Saí de casa bem cedo ainda com dezesseis e logo comecei a trabalhar. Nunca pedi um tostão pro meu pai aquele cachorro que não merece a mulher que tem. Tu fuma? Tou sem fogo. Que merda – esse trecho ela interpretou com uma careta insatisfeita que me fez esquecer por um momento o vocábulo bruxo, a queimação no estômago, aquela festa estéril e entregar-me todo naquela boca entortada temporariamente pela abstinência do cigarro –, tenho que me fudê mesmo. Desculpa às vezes fico meio desbocada. Como eu tava te dizendo eu sou prima do cara que tá dando a festa. Não precisa me olhar desse jeito. Eu sei que ele é um idiota. Tou aqui porque não tinha nada melhor pra fazer e ainda dei sorte de te encontrar. Vi que tu fica só observando e tirando silenciosamente todo mundo que tá aqui pra otário. Se acha esperto e inteligente né? E eu sei que até deve ser as duas coisas. Mas eu acho que essa tua esperteza pode esbarrar às vezes na amargura. Tu não tem o corpo do meu primo não tem o carro dele nem a namorada alaranjada mas gostosa dele. Aí fica puxando o saco e bebendo de graça e ainda tem a sorte de me encontrar por aqui. Calma. Tou falando isso só pra te deixar mal. Acho que consegui. Era só brincadeira. Me leva embora daqui!
Guilherme
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