Ao apagar das luzes
Há um vazio; um vazio inquietante e perturbador desde que ela fechou a porta e foi embora. Um estalido seco, sem força, sem dor. E o vazio está aqui. Em formato de mim. Eu jogado no sofá com uma cerveja esquentando nas mãos e sem vontade alguma de levantar. Daqui tenho uma visão ampla da sala: a tevê começa a clarear com tanta poeira retida em sua superfície e essa lareira inútil serve só para deixar o frio entrar. Posicionei-me num ângulo favorecido para a perscrutação da paisagem que a janela emoldura: parte do rio e um recorte dos morros de Porto Alegre. Há pequenas luzes movendo-se do outro lado do rio, sinaleiras sonolentas de automóveis, numa pressa que contrasta com a minha inércia. Eles todos parecem ratinhos de laboratório resfolegando sobre uma mini-esteira. É claro que me incluo nessa metáfora como o cientista que engendra os testes e analisa as reações previsíveis das cobaias. Fazia tempo que não ficava vegetando e bebendo ao mesmo tempo. É tarefa que deveras me agrada. Tanto quanto repetir “deveras” de forma silabada até a voz sumir das minhas cordas vocais. DE-VE-RAS.
Ela ansiava pelo que eu tinha a falar. Eu notei assim que os olhos sempre insolentes de gata amansaram-se e se transformaram em obedientes olhos de cadela. O que me assustou e retardou a minha confissão. Saboreei como pude aquele momento. Ela com a cabeça inclinada e o queixo do furinho quase imperceptível roçando os seios. Os seios balançando de nervosismo com a marcha estática que as pernas dela reproduzem quando passa por uma situação delicada. A boca levemente aberta parecendo repetir silenciosamente o xingamento decorado, caso o que eu tenha para falar a desagrade.
Eu conheço todas essas expressões há muito tempo. Lembro como reagiu no dia em que admiti a noite de luxúria que passei com a Claudinha; logo com a Claudinha. Despejei cada detalhe e gemido da Claudinha, inclusive a entonação dos gemidos, as posições acrobáticas, e observei as mudanças de expressão que seu rosto ia sofrendo. Estava calma, até serena, quando chegou. Após poucas frases proferidas por mim, o ódio foi moldando suas atitudes, seja pelo tom de voz desesperado, seja pelo calor que provocava os puxões na saia de tecido mole que ia até os pés. Esteve a ponto de me agredir. Quando aproximava a mão direita de meu rosto, me defendi. Segurei-a, anulei os dois braços, virei-a de costas completamente dominada, e perguntei o que ela queria. Ela nunca gemeu tanto quanto naquela noite. Parecia que competia com a Claudinha – mesmo sem nunca vê-la gemer, inspirada somente na minha imitação rouca e machista.
Ainda não sei porque fiz aquilo; nem porque disse a ela tudo aquilo agora há pouco. Menti que tinha sido aceito no programa de extensão em Buenos Aires. Disse que Vou morar seis meses lá, estudando muito, e sem tempo pra perder contigo!, falei e esperei a careta que começava a se desenhar na cara dela molhada pelas lágrimas. Pode parecer algo sádico, maldoso; não é. Só tenho certeza de que não poderia guardar comigo todas essas impressões cotidianas. Seria egoísmo demais. Vejo tantas coisas que ela nunca seria capaz de vislumbrar que me coloco em seu lugar e me solidarizo com sua ignorância segura; preciso arrastar alguém comigo para esse poço de solidão lúdica. A alegria vela a consciência, Camila, mascara a verdade com a gargalhada. A tristeza não. Denuncia a tua, a minha e a condição errática de todos esses que correm na mini-esteira sem saber que nunca vão chegar.
Estou certo de que não demora ela está de volta. Parece que a porta foi aberta; deve ser ela; é. Carrega uma insatisfação ébria e comovente nos olhos, seguramente abastecida de uísque. Ela me olha quase sem piscar como se perguntasse Quanto tempo tu vai ficar aí me olhando com esse riso idiota na boca?, Nós não temos tempo pra perder!, Tu vai embora, me deixar aqui, mas antes eu quero dar pra ti até fazer bico! Só um pouco mais, Camila, só um pouco. Deixa eu guardar essa cena na minha mente pra quando tu não estiver comigo aqui; porque assim que eu revelar o engano da extensão, que não há viagem, que nunca houve, eu sei que tu vai enrubescer de raiva e me abandonar por um bom tempo.
Ela de pernas trêmulas, parte iluminada pela luz que o poste público empresta ao apartamento, parte escondida pela sombra que domina quase todo o interior da peça. Começa a tirar a calça de brim que acentua propositalmente o quadril; me chama com o indicador enquanto se despe da blusa. Resta apenas a calcinha. Eu poderia morar ali, junto daquela calcinha, talvez ao lado, deitado sobre um sinal no limiar da coxa, me alimentando somente das texturas e odores que aquela região me proveria. Ela nua e exalando cio pelos poros e já bastante impaciente. Tá bom, Camila. Agora chega. Me desculpem os leitores, tenho mais o que fazer; está na hora de fechar as cortinas.
Guilherme
Ela ansiava pelo que eu tinha a falar. Eu notei assim que os olhos sempre insolentes de gata amansaram-se e se transformaram em obedientes olhos de cadela. O que me assustou e retardou a minha confissão. Saboreei como pude aquele momento. Ela com a cabeça inclinada e o queixo do furinho quase imperceptível roçando os seios. Os seios balançando de nervosismo com a marcha estática que as pernas dela reproduzem quando passa por uma situação delicada. A boca levemente aberta parecendo repetir silenciosamente o xingamento decorado, caso o que eu tenha para falar a desagrade.
Eu conheço todas essas expressões há muito tempo. Lembro como reagiu no dia em que admiti a noite de luxúria que passei com a Claudinha; logo com a Claudinha. Despejei cada detalhe e gemido da Claudinha, inclusive a entonação dos gemidos, as posições acrobáticas, e observei as mudanças de expressão que seu rosto ia sofrendo. Estava calma, até serena, quando chegou. Após poucas frases proferidas por mim, o ódio foi moldando suas atitudes, seja pelo tom de voz desesperado, seja pelo calor que provocava os puxões na saia de tecido mole que ia até os pés. Esteve a ponto de me agredir. Quando aproximava a mão direita de meu rosto, me defendi. Segurei-a, anulei os dois braços, virei-a de costas completamente dominada, e perguntei o que ela queria. Ela nunca gemeu tanto quanto naquela noite. Parecia que competia com a Claudinha – mesmo sem nunca vê-la gemer, inspirada somente na minha imitação rouca e machista.
Ainda não sei porque fiz aquilo; nem porque disse a ela tudo aquilo agora há pouco. Menti que tinha sido aceito no programa de extensão em Buenos Aires. Disse que Vou morar seis meses lá, estudando muito, e sem tempo pra perder contigo!, falei e esperei a careta que começava a se desenhar na cara dela molhada pelas lágrimas. Pode parecer algo sádico, maldoso; não é. Só tenho certeza de que não poderia guardar comigo todas essas impressões cotidianas. Seria egoísmo demais. Vejo tantas coisas que ela nunca seria capaz de vislumbrar que me coloco em seu lugar e me solidarizo com sua ignorância segura; preciso arrastar alguém comigo para esse poço de solidão lúdica. A alegria vela a consciência, Camila, mascara a verdade com a gargalhada. A tristeza não. Denuncia a tua, a minha e a condição errática de todos esses que correm na mini-esteira sem saber que nunca vão chegar.
Estou certo de que não demora ela está de volta. Parece que a porta foi aberta; deve ser ela; é. Carrega uma insatisfação ébria e comovente nos olhos, seguramente abastecida de uísque. Ela me olha quase sem piscar como se perguntasse Quanto tempo tu vai ficar aí me olhando com esse riso idiota na boca?, Nós não temos tempo pra perder!, Tu vai embora, me deixar aqui, mas antes eu quero dar pra ti até fazer bico! Só um pouco mais, Camila, só um pouco. Deixa eu guardar essa cena na minha mente pra quando tu não estiver comigo aqui; porque assim que eu revelar o engano da extensão, que não há viagem, que nunca houve, eu sei que tu vai enrubescer de raiva e me abandonar por um bom tempo.
Ela de pernas trêmulas, parte iluminada pela luz que o poste público empresta ao apartamento, parte escondida pela sombra que domina quase todo o interior da peça. Começa a tirar a calça de brim que acentua propositalmente o quadril; me chama com o indicador enquanto se despe da blusa. Resta apenas a calcinha. Eu poderia morar ali, junto daquela calcinha, talvez ao lado, deitado sobre um sinal no limiar da coxa, me alimentando somente das texturas e odores que aquela região me proveria. Ela nua e exalando cio pelos poros e já bastante impaciente. Tá bom, Camila. Agora chega. Me desculpem os leitores, tenho mais o que fazer; está na hora de fechar as cortinas.
Guilherme
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