quinta-feira, julho 19, 2007

O passageiro

A moça passa, passo a passo, lentamente. Balança as coxas, levita a saia, enrola as tranças sobre o pescoço esguio e some na esquina. Elas sempre somem. Eu não. Eu desboto; feito tinta de tecido vagabundo. Essa cadeira fria não me assusta. A cerveja gelada tampouco. Mas os olhares desdenhosos eu não admito. Carrego um dia de labuta e sol na nuca. E mesmo assim constranjo-me de bebericar meu copo. A espuma me acaricia o bigode, um dos poucos carinhos que recebo por esses tempos. Sei que minha roupa denuncia a limitação de meu ordenado. A camisa amarelecida e amarfanhada, a calça rota, esquecendo que foi negra, e os sapatos enrugados. Eles todos justificam a bebida. Eles e minha casa, minha mulher e meus filhos.

Esse rio é bonito mesmo. Às vezes, quando já passo das quatro garrafas, dá uma vontade infantil de ficar olhando pra ele sem piscar; porque se piscar eu perco um segundo de rio, e um segundo de rio pode me fazer falta na lembrança que levo para casa. E eu quase soluço, só não o faço porque sou homem feito, com barba na cara e porque sei dos sorrisos maldosos e cúmplices que esses bebuns trocariam para troçar de mim. São uns derrotados. Todos eles. Mesmo os três que já começam a falar alto na mesa ao lado, não passam de fracassados. Pelo visto já chegaram à casa dos trinta anos. Deixaram para trás as promessas que a vida lhes travou em conversas na escola e nos primeiros anos de trabalho; quando recebiam de tios e padrinhos o afago da esperança familiar: Ele vai dar certo, Ele é trabalhador, Ele é estudioso. Estudou, trabalhou e nunca acertou. São uns idiotas. Eu também sou, não nego. Mas, pelo menos, tenho plena consciência disso. Quando se chega aos quarenta anos dependendo da boa vontade de um filho da puta que na tua adolescência era colega-de-colégio-bundão-e-assustado e depois de trinta anos virou teu chefe, restam duas alternativas: a reflexão resignada e a subversão criminosa. Escolhi a primeira opção. Não teria coragem para matá-lo. E, de resto, meus dias começam a escassear por aqui, não valeria a pena.

O rio já ganhou um tom azul-marinho, mais triste. Não sei se é algo causado pela bebida, mas nunca senti tanta saudade de Joana quanto agora. Queria que ela estivesse aqui para dizer-lhe que Mesmo com toda essa droga que é a nossa vida, Joana, eu ainda faria tudo de novo só para poder vê-la sorrindo com as bochechas grandes e encovadas e os olhos cerrados escondidos pelos óculos de grau, Joana, só para, pelo menos uma última vez, levantar o teu cabelo molhado recém saído do banho e sentir o cheiro de sabonete da tua nuca, Joana, e te implorar pra não borrifar aquele perfume barato sobre esse aroma de banho; do teu banho, Joana.

Há poucas pessoas na calçada. O dono do bar começa a impacientar-se com a minha solitária presença. Certamente não é lucro para ele manter seu estabelecimento aberto madrugada adentro para satisfazer um cliente que bebe numa velocidade vagarosa, provocante, como eu. Mas não saio. Enrijeça os músculos da cara, incline as sobrancelhas, engrosse a voz, Seu-dono-de-bar-tão-derrotado-quanto-eu, que hoje eu só saio daqui depois de perder a consciência e a lucidez; e lhe asseguro que isso demora. Ajuste-se num assento confortável que o rio ainda anda escuro, e me segredou há pouco que é mais seguro deixá-lo só, apenas quando o sol corar novamente suas águas e as moças voltarem a balançar suas coxas a caminho do trabalho.

Guilherme

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