quarta-feira, maio 30, 2007

primeira pessoa - parte dois

Ana entrou no apartamento e gostou do que viu. Um quarto, uma sala minúscula e um banheiro. A sala tinha uma estante enorme com uma quantidade assustadora de livros. Ela percorreu-a com o olhar e interessou-se pela maioria dos títulos. Viu Camus, Houellebecq, Sartre, e achou que havia somente franceses por lá; mas logo Gogol deu as caras ao lado de Crime e Castigo, que repousava reclinado sobre o guarda-livros no formato de um globo terrestre, encerrando a fileira de clássicos. Havia espaços entre algumas obras e bastava andar pela sala para notar que o que faltava na estante estava espalhado desordenadamente pelo chão. Um computador obsoleto, uma poltrona desbotada e um quadro que deveria ser uma pintura abstrata malfeita compunham o restante do ambiente. Tu não tem tevê?, Ana perguntou. Não, tem um cinema aqui perto. E o que tu faz? Escrevo. Como assim? Escrevo contos. Sobre o quê? Pessoas: sento na praça ali na frente – Marcelo apontou o dedo indicador delgado da mão direita para a janela e Ana viu um banco circundado pela persiana vacilante – e observo, depois coloco no papel o que vejo. Quantos contos tu tem? Cento e noventa e cinco. Tudo isso? É.

Depois de beberem quatro garrafas de cerveja – último resquício de alimento que Marcelo mantinha em casa –, sentaram-se no chão, um tanto tontos, e ficaram quietos por alguns segundos. Marcelo fixando o olhar no quadro mal acabado da parede; Ana fixando o olhar nos olhos de Marcelo, e perguntando Posso ler um dos teus textos? Marcelo foi até o quarto e pegou uma pasta preta. Ana chegou antes de ele voltar, tirou-lhe a pasta da mão e soltou-a no chão, penteou com os dedos os cabelos sempre despenteados dele e abocanhou-lhe o nariz torto; abocanhou-lhe o queixo peludo; abocanhou-lhe os olhos pacíficos e beijou-lhe com a sede de alguém que há muito tempo não o fazia. Já deitados na cama, Marcelo experimentou o sexo de Ana, e ele tinha um gosto agridoce do qual não queria mais se desfazer, queria deixá-lo impregnado em cada parte de seu corpo; um gosto de bebida quente e forte, adocicada com os gemidos prolongados e intensos dela. Marcelo queria fotografar aquele momento, e não podia. Era protagonista. O que lhe atrapalhou um pouco na execução dos movimentos, longe de resultar em algo frustrante; apenas poderia ter sido melhor, isso poderia.

Ficaram sem se falar por alguns dias. Era trabalho, era aula, era outro compromisso qualquer que pululam na vida atribulada da maioria dos jovens. Em algum momento teriam que se reencontrar. E foi num sábado à tarde, com sol e um friozinho discreto de inverno, na praça em frente ao apartamento de Marcelo. Ele olhou pela janela e lá estava Ana, ainda mais linda do que da outra vez. O mesmo cabelo laranja, a mesma pele leitosa, o mesmo lábio molhado, naturalmente úmido. Marcelo apanhou uma folha amassada que estava sobre a mesa do computador e desceu para o encontro. Suava mais do que naquela vez da parada de ônibus.

Sentou-se ao lado dela e ofereceu a folha que carregava. Toma. Quê isso? Um presente, um conto, meu conto cento e noventa e seis. Sobre o quê? Sobre um cara que conheceu uma guria de cabelo cor de laranja, que usa roupas estranhas e tem a boca naturalmente úmida e o sexo com gosto de uma bebida forte, agridoce. É sobre mim? É a primeira vez que escrevo na primeira pessoa. É sobre mim? Não sei se consigo fazer de novo. É sobre mim? Agora tenho que ir. Pra onde? Pro meu apartamento.

(ana ficou cuidando o cara magrelo com feições de terrorista árabe se afastar e não se moveu. juntou suas coisas e caminhou durante algum tempo respirando fundo e com o sol lhe acertando o rosto em cheio. entrou num cinema e leu com dificuldade o conto. rasgou o papel e jogou-o no lixo assim que saiu da sala após penélope cruz dizer a última palavra do filme e os letreiros começarem a descer)

Marcelo deixou a praça, subiu as escadas lentamente. Quando sentou na poltrona e mirou a janela, o banco estava vazio. Encostou os cotovelos no vão que o vidro deixa quando aberto e ficou olhando e anotando sobre o andar dificultoso de um velho de corpo afilado e braços compridos, que limpava com zelo o banco para se sentar e tomar solitário um chimarrão naquele sol de sábado. E ele quis fazer o mesmo, deu nele uma sensação de hálito fresco e ânimo renovado, uma certeza de que as coisas deveriam mudar para melhor, que ele molhou os lábios com a língua, para lembrar-se de Ana, e ficou ali, olhando para o banco até anoitecer e a praça ficar deserta e iluminada apenas por refletores desregulados, e ser levado a fechar novamente a janela para proteger-se do frio.

Guilherme

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