segunda-feira, outubro 29, 2007

Verborragia

Ela era a menina mais triste do mundo. Os olhos sumiam na maquiagem borrada pelas lágrimas, e a luz vermelha do galpão não ajudava nem um pouco. Ela mirava os pés, o piso cinza, algumas garrafas de cerveja vazias e não voltava a me encarar. Era ela toda sensual. Magrela, de pernas finas, cabelo iluminado e solto, mãos habilidosas e olhos indolentes. Queria transar comigo a noite inteira. Soltar a blusa pelo chão, escorrer a calça até as canelas e se entregar até o sumo.

Era tudo resultado de sua tristeza. O trago. A tesão. O calor. A música balançava-lhe o corpo como a uma rede preguiçosa. Não posso dizer que não estive a ponto de ceder. Abraçar-lhe com força. Arrancar-lhe calça, blusa, sutiã, calcinha e possui-la de todas as formas possíveis. Mas adivinhava-lhe ensimesmada. Cada gole de cerveja alimentava o desalento dos olhos pequenos. Os gemidos decorados e premeditados não me atiçavam mais do que um desejo distraído, morno.

Vem dançar, ela ronronou. Eu fui. Começamos a rodar. As luzes alternavam a cor do ambiente. Ora vermelho, ora azul; ora verde, ora amarelo. Roubado o arco-íris do céu por algumas horas; mesmo naquela madrugada de chuva. A cerveja começava a nos cegar. Soltávamos os braços no ar, como se invocássemos um deus qualquer. Eu invocava a inércia, o esquecimento do dia seguinte, tentava alcançar as estrelas e a lua. Ela pedia para não chorar. Para que o vazio de seu ventre fosse alimentado logo de uma vez. Para que o vazio de sua vida fosse preenchido com meus intentos. Para que o vazio de seus dias fosse ocupado pela minha madrugada ébria. Acabamos frustrados. Objetivos inatingíveis. Começávamos a ficar sóbrios e entediados. E logo o sofá surgiu como porto seguro.

Fala alguma coisa bonita pra mim, ela implorou. Eu não tinha nada belo pra falar. A única coisa que me veio à cabeça naquela hora foi um delírio autobiográfico, dotado da arrogância e do egocentrismo que permeiam as mentes combalidas pelo álcool:

Somos uma geração sem heróis; aqueles poucos que podiam ocupar o posto envelheceram – gostei da frase e conferi à minha voz uma entonação mais imponente para enfatizar o restante do que diria. Somos uma geração sem papel definido, amparados na coxia do teatro ou assistindo ao espetáculo pela tevê. Há os nostálgicos revolucionários, que desconhecem Neruda e decoram os discursos de Lênin para proferi-los enquanto masturbam-se na solidão do quarto; há os antenados e(ou) moderados, facilmente adaptados à vida e perseguidores idiotas da felicidade; há uma dissidência desses mesmos antenados, porém com a vantagem de estarem cientes de sua posição ridícula; e há determinados indivíduos que não conseguiram se enquadrar em nenhuma alternativa, entre os quais me incluo. Talvez eu seja um poeta medíocre que apenas contempla, e se basta com o riso discreto no canto do lábio, em detrimento da posteridade concedida pela tinta e o papel. Como aqueles chineses que riscam versos no chão ressequido com pincel molhado em água, sábios da pouca relevância do que dizem e assassinos da própria criação – final triunfal; pena não ter um gravador numa hora dessas.

Só quando parei de falar e olhei para ela, notei que ressonava; e numa constância que indicava alguns minutos de sono profundo. Nem ela ouviu o que tinha para dizer. E isso tampouco me surpreendia.

Aqueci seu corpo, cobrindo-o com o meu como uma concha. Fazia frio lá fora. Olhei ao redor e todos dormiam. Beijei-lhe o rosto mais uma vez e fechei meus olhos. Adormecemos vencidos pela tristeza e pelo álcool.

Algumas horas depois fomos acordados pelo sol que nascia em meio à neblina evasiva que escondia o verde do campo. Os guris espalhados pelo galpão: todos bêbados; todos tombados; todos sujos; mas, sobretudo, todos de alma lavada, como um armário escancarado, despidos de segredos inúteis e renovados até o próximo trago.

Deixamos o sítio sob o frescor da manhã. Despedi-me dela no portão de sua casa. Me dá pelo menos um beijo, ela pediu. Eu dei. Ela sorriu e andou trôpega até a porta. Abanou e rapidamente sumiu. Voltei para o carro e fui levado pra casa. Tinha que dormir. Logo mais pegava o ônibus para a faculdade. Mas antes ia sonhar com nossa festa. A festa frustrada que fizemos. Talvez a mais intensa e etílica de todas.

Guilherme

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

"Os guris espalhados pelo galpão: todos bêbados; todos tombados; todos sujos; mas, sobretudo, todos de alma lavada, como um armário escancarado, despidos de segredos inúteis e renovados até o próximo trago"...

Muito legal essa passagem...

Estão muito bom os textinhos gurizada...

Vamos manter essa atualização aí...

Abração...

Pedro...

2:52 PM  

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