O balé invisível
* Para ser lido ao som de Mulheres de Atenas, de Chico Buarque.
Eu sei que logo o despertador vai avisá-lo que mais um dia de labor começa, que mais uma alvorada desponta inexorável e desalentadora do lado de fora da porta. Eu sei que esse cheiro de rotina mofada e seca, essa repetição alugada, essa lamúria dos teus olhos me pertencem. Sim, os meus passos curtos e de chinelas arrastadas lhe irritam os ouvidos. Já não tenho o viço na anca como aos vinte anos. Já não gozo o teu sexo como a adolescente que conhecera. E sei que esse levantar apressado e atrasado seu, de ranços e lamentos, é um aviso para mim: veja, mulher! Vida ingrata! E a culpa é toda sua.
Eu sei que é minha. Quando vejo as crianças acolhidas sob os teus braços protetores ainda acredito que toda essa pobreza que cultivamos acabará. Quando espiono teu barbear, o rosto de pêlos aparados, a linha arbitrária que corta o pescoço, a determinação de teus olhos aguados, creio numa vida mais doce. Mas logo as panelas sujas e os cantos empoeirados me chamam pelo nome. E a tua silhueta próxima à porta do banheiro evapora. O silêncio é quebrado apenas pelo som arranhado do rádio de pilha. A tua voz permanece enclausurada em minha mente. Num cantar abstrato, informe. E eu me resigno a isso tudo.
Porque eu sei que quando o relógio formar uma linha vertical na parede enrugada de nossa sala faltará pouco para teu retorno. E até lá, desempenho minha coreografia diária, meu balé sem charme e sofisticação. Até lá, alimento os sulcos em minhas mãos cansadas. Até lá, retoco as olheiras que escurecem meus sonolentos olhos. Até lá, recito os versos que ouço no rádio; os versos que me lembram de ti; os versos que aguardam a tua chegada.
Nessa dança onerosa e vil, sacrifico mais um dia de minha vida. O chão brilha muitos mais do que meu esmalte. Os móveis respiram ares mais limpos que minhas narinas. Os lençóis adormecem imaculados sobre nossa cama, enquanto meu avental respinga lágrimas de sujeira.
Por isso derramo a água do chuveiro por sobre o meu desencanto. Ensabôo cada poro de minha pele vincada. Hidrato o meu corpo exaurido com o cheiro harmonioso do sabonete e perfumo os fios embranquecidas de meus cabelos com o aroma suave do xampu. Tudo para ti. Tudo ajustado para a tua chegada. Para que elogie a janta repetindo o prato. Para que tomemos a sobremesa com avidez. Para que deitemos as crianças com o zelo que somente os pais dominam. E para que ao apagar das luzes, eu me entregue feito uma Mulher de Atenas. E nos teus braços combalidos de guerreiro urbano descubra a felicidade efêmera que a madrugada nos concede. Esqueço das panelas, dos cantos empoeirados, das crianças, da vida. E revelo no teu colo a minha verdadeira vocação.
Guilherme
Eu sei que logo o despertador vai avisá-lo que mais um dia de labor começa, que mais uma alvorada desponta inexorável e desalentadora do lado de fora da porta. Eu sei que esse cheiro de rotina mofada e seca, essa repetição alugada, essa lamúria dos teus olhos me pertencem. Sim, os meus passos curtos e de chinelas arrastadas lhe irritam os ouvidos. Já não tenho o viço na anca como aos vinte anos. Já não gozo o teu sexo como a adolescente que conhecera. E sei que esse levantar apressado e atrasado seu, de ranços e lamentos, é um aviso para mim: veja, mulher! Vida ingrata! E a culpa é toda sua.
Eu sei que é minha. Quando vejo as crianças acolhidas sob os teus braços protetores ainda acredito que toda essa pobreza que cultivamos acabará. Quando espiono teu barbear, o rosto de pêlos aparados, a linha arbitrária que corta o pescoço, a determinação de teus olhos aguados, creio numa vida mais doce. Mas logo as panelas sujas e os cantos empoeirados me chamam pelo nome. E a tua silhueta próxima à porta do banheiro evapora. O silêncio é quebrado apenas pelo som arranhado do rádio de pilha. A tua voz permanece enclausurada em minha mente. Num cantar abstrato, informe. E eu me resigno a isso tudo.
Porque eu sei que quando o relógio formar uma linha vertical na parede enrugada de nossa sala faltará pouco para teu retorno. E até lá, desempenho minha coreografia diária, meu balé sem charme e sofisticação. Até lá, alimento os sulcos em minhas mãos cansadas. Até lá, retoco as olheiras que escurecem meus sonolentos olhos. Até lá, recito os versos que ouço no rádio; os versos que me lembram de ti; os versos que aguardam a tua chegada.
Nessa dança onerosa e vil, sacrifico mais um dia de minha vida. O chão brilha muitos mais do que meu esmalte. Os móveis respiram ares mais limpos que minhas narinas. Os lençóis adormecem imaculados sobre nossa cama, enquanto meu avental respinga lágrimas de sujeira.
Por isso derramo a água do chuveiro por sobre o meu desencanto. Ensabôo cada poro de minha pele vincada. Hidrato o meu corpo exaurido com o cheiro harmonioso do sabonete e perfumo os fios embranquecidas de meus cabelos com o aroma suave do xampu. Tudo para ti. Tudo ajustado para a tua chegada. Para que elogie a janta repetindo o prato. Para que tomemos a sobremesa com avidez. Para que deitemos as crianças com o zelo que somente os pais dominam. E para que ao apagar das luzes, eu me entregue feito uma Mulher de Atenas. E nos teus braços combalidos de guerreiro urbano descubra a felicidade efêmera que a madrugada nos concede. Esqueço das panelas, dos cantos empoeirados, das crianças, da vida. E revelo no teu colo a minha verdadeira vocação.
Guilherme
3 Comentários:
Belo texto. A personagem feminina que é foda...
Segtuinte, Fabio...entra no meu blog e olha nos links...ali tem um chamado Blog Colorado..ali ta funcionando...vou ter d arrumar o link do post q digitei errado. abração!!
gostei do "xampu", fazia tempo que não lia essa palavra corretamente.
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