terça-feira, outubro 03, 2006

Inadequado

A cada dia que saio na rua me sinto um pouco mais inadequado; anacrônico; obsoleto; ultrapassado. É muito fácil se sentir assim. Não tenho a pretensão de ser vanguardista. Experimente. Avance pela calçada, caminhe alguns passos, não precisa ser muitos, logo os seus ouvidos reconhecerão o barulho. Tum-tum-tum-tum-tum. E como treme aquele carro. Não sei se anda mais para frente ou para os lados; rebola – talvez seja o desejo secreto do dono – ao som de uma música cantada numa língua estrangeira, completamente ininteligível para ele. Ou pior. Toca Racionais Mcs. Ele deve pensar que o Mano Brown é americano. Canta em inglês, como outros tantos que aparecem na MTV. Não consigo acreditar que ouça as músicas, que preste a mínima atenção nas letras. É só tum-tum-tum-tum. E o Mano Brown grita: “Eu não preciso de status nem fama / seu carro e sua grana já não me seduz / e nem a sua puta de olhos azuis”. Ele sorri para a loira ao seu lado. Ela eleva uma das sobrancelhas. Tenta fazer alguma ligação da música com a realidade. Tenta pensar. Fracassa. E sorri de volta.

A cada dia que saio na rua e não tenho ao meu lado um pitt bull, me envergonho. Aquela masculinidade toda que recende de sua expressão viril, os músculos das patas bem torneados, os olhos febris e inquisidores. Nunca vi cachorro nenhum provocar briga. Até essa raça ser criada. Ele deve pensar: vou tirar esses humanos desprovidos de caninos tão perfeitos pra otários; esses trouxas e medrosos bípedes; esses frágeis e desarmados idiotas. E abocanha uma perna com sua mordida de tubarão. Não é a raça, é o dono que faz ele ser violento. Não acho. Nesses casos acontece exatamente o contrário: o cachorro é o cérebro da dupla. É o único que pensa. O outro rumina esterco na cabeça. Fedorenta e inútil.

A cada dia que saio na rua desejo ter ficado em casa. Mas quando fico em casa ela treme. Vou até a janela. O vidro gagueja a sua tepidez. Há alguns descerebrados lá embaixo. Inclinam o corpo no banco do carro. Uma mão na direção. A outra coçando o rosto imberbe. O rádio esgarçando a voz do Mano Brown. E o Golf vermelho se arrastando a centímetros por hora. Cumprimenta o filho do dono da loja de roupa. Cumprimenta o filho do dono da empresa de papel. Cumprimenta o filho do traficante (de madeira). Cumprimenta o filho do secretário de segurança. Cumprimenta o filho do dono da cidade. Cumprimenta a si mesmo no espelho retrovisor.

deixo a janela. ligo a televisão. desligo a televisão. volto à janela. é mais divertido. cumprimento um aba reta. cumprimento um vira-lata sarnento. cumprimento o rio, o sol, o céu e aquele retardado do Golf vermelho. ele faz que não me vê. eu não ligo.

Guilherme

1 Comentários:

Blogger Leandro Luz disse...

Beleza, cara, me identifiquei com esse texto. Mas nao como o babaca do carro. Abraço

5:35 PM  

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