sábado, junho 23, 2007

Réquiem Familiar

Eu podia ter evitado tudo aquilo, claro que podia, mas faria só adiar uma conversa inevitável, se é que se pode chamar aquilo de conversa, porque quem falou foi ela, eu só ouvi, e ouvi demais, estive a ponto de mandar ela tomar no olho do cu e pegar todas as porcarias nas quais ela acredita – a igreja que freqüenta nos finais de semana, os churrascos religiosos com o grupo de casais, o emprego em repartição pública, as bolsas, o carro do ano, as roupas – e enfiar tudo de uma só vez no rego empolado do bispo. Mas havia ainda em mim um resto de respeito que desconhecia, de modo que não falei uma única palavra. Nada. Tinha um discurso extenso e há muito tempo elaborado para cuspir em sua segurança familiar, em seus preconceitos que não herdei, em sua vida medíocre que ela espera fazer ecoar na minha mas que está muito enganada. Podia ter falado que não adianta mais tentar remediar uma existência que já é decadente, envelhecida, mortificada em certo sentido, não adianta, eu ainda tenho muito que viver e tu não vai empenhar meus dias nessa casa estéril.

Ela desdenha de tudo aquilo no qual emprego o mínimo de crença, debochou de todas as ideologias que até hoje cultivei e diz que eu sou um sonhador, eu tou iludido, eu tou hipnotizado por esses preguiçosos que não têm emprego, que não buscaram seu lugar ao sol, e ficam mentindo pra gente ingênua como tu. Novidade, mãe: o sol já apagou faz tempo, só tu que não viu, aliás, desconfio que ele nunca acendeu, olha pra essa tua vida cretina ao menos uma vez e não atribui a um deus que tu acredita porque convém mostrar-se crédula na frente dos vizinhos e das viúvas dos padres os erros que tu cometeu, não queira agora me amordaçar com as mesmas correntes que te levaram pra esse fosso sem volta, podia ter falado tudo isso, mas apenas ouvia. Ouvia que está na hora de começar a dar jeito na vida, que com vinte e três anos o teu pai já tava formado e trabalhando pro sustento da família, que orgulhava o vô desde novo, e não ficava perdendo tempo lendo besteiras ou vendo filmes que pregam a preguiça.

Quanta mediocridade, mãe, eu pensava, eu não reconheço o ventre que me concebeu, o escroto que produziu o espermatozóide que fecundou o teu óvulo, aquele zumbi que andava no quarto do teu filho morreu, e não tem nada a ver com o quadro do Che, nada a ver com o Chávez, com o Marx, o Nassar, o Nietzsche, o Mao, o Houellebecq, o Galera, o Dostoievski, o Fidel, o Lênin, o Garcia Márquez, o Galeano, mãe, eles são vítimas, tu é a culpada, tu, o pai, e toda essa merda na qual vocês transformaram a nossa casa. Eu sou um intruso, mãe, eu não dizia, eu pensava pensava pensava. Até que ela terminou o monólogo moral e saiu tremendo. Apanhei algumas roupas, botei fogo no quadro do Che, escrevi na parede do meu quarto, com o carvão que sobrou do churrasco de domingo, Vão todos pra puta-que-o-pariu! O sol apagou faz tempo! Preparem os guarda-chuvas!, e saí andando até a parada. Fitei pela última vez a casa e escolhi meu lugar na janela, pra derramar o olhar o mais longe possível dali.

Guilherme

3 Comentários:

Blogger Guilherme Lessa Bica disse...

Um afronta a moral e aos bons costumes...

ahuauhauhahuauhhuauha


mto bom

Fabio

8:34 PM  
Anonymous Anônimo disse...

tem q atualizar....

11:17 AM  
Blogger Leandro Luz disse...

muito bom... mas vamos atualizar mais ae (olha quem fala, ehehhe)

1:51 AM  

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