Crise existencial
- Ca-ra-le-o! - Daniel segura a porta do refrigerador surpreso e irritado.
- Que foi? - Gustavo desloca a cabeça e o olhar em direção a Daniel.
- Acabou a ceva! - olhos saltados de desespero.
- Puta merda. E agora? - a pergunta sai da boca de Gustavo, mas não é somente proferida diretamente a Daniel, ele busca uma resposta maior, quer uma explicação concreta. Porque ainda não está com aquela sensação de pança cheia e andando com dificuldade, o que determinaria o fim de um trago.
- É nessas horas que um de nós tinha que tirar uma porra duma carteira. Faz falta. Tamo ilhado aqui no sítio e não podemo nem ir até o centro.
- É foda...
- E agora, o que vamo fazê?
- ... - silêncio ensimesmado de dois bêbados amadores de vinte e três anos que não têm a cancha dos tios de quarenta e poucos, e bebem a cerveja com a sede daqueles que acham que vão morrer amanhã.
- Eu vou aproveitar então que eu e tu tamo bêbado já, e te falar sobre a teoria que eu formulei esses dias, quando andava de trem indo pra uni, e balançava pra cá e pra lá naquela dança suarenta e interminável que os passageiros executam à tardinha, superlotando aquela merda.
- ... - silêncio de consentimento contrariado, com as covinhas se formando nas bochechas e os ombros indicando que tanto faz se a teoria for contada ou não, porque vou esquecê-la assim que soltar a minha cabeça cheia de álcool sobre o travesseiro.
- Tá. Eu tava entre uma tia gorda, uma gostosa, que decerto ia pro prédio do direito quando chegasse no campus, e um idiota todo suado com cara débil. Manja cara débil? Assim, ó: com os olhos caídos e perdidos. Então, eu tava lá e esse retardado começou a forçar o tronco dele sobre as minhas costas!
Daniel segura Gustavo pelos braços e balança o amigo:
- Tá me ouvindo??? Tá me ouvindo???
- Continua, porra!
- Calma... Tô contando. A toda oportunidade que ele tinha, qualquer desvio ou curva efetuada no trajeto do trem, esse cara aproveitava pra me empurrar sobre a tia. Pra piorar, começou a contar uma história sobre um campeonato de futebol que ele jogou muito, e uma dor que sentira na perna esquerda, fruto da suposta perseguição desleal dos adversários à sua habilidade. Mas ninguém prestava a mínima atenção nisso. Queriam só ficar quietos e olhar para a janela e fingir que são normais. Aí eu virei bem de frente pra ele e olhei bem no olho daquele merda. Bem no fundo do olho dele, no fundo da insignificância da existência dele, de toda aquela coisa sem sentido que era a presença dele ali. E foi nessa hora que eu concluí, com todo o suor da minha camisa, com o sol na minha cara e o bafo da tia gorda me enjoando: aquele cara não precisava existir; o fato de ele estar no mundo não acrescenta em nada; em porra de nada nenhuma! - Daniel esmurra o balcão que o separa do interlocutor e amigo para enfatizar o discurso.
- Vai quebrar, porra. Te liga!
- Foi mal... foi mal. Eu ainda não engoli aquele imbecil. Mas, continuando, ele não faria falta alguma. Poderia facilmente ser abatido em um acidente, num assalto, situações que podem ser enfrentadas por qualquer um, das quais ninguém está livre, mas que serviriam também para eliminar essas bestas, e não somente enriquecer os bolsos de quem as articula.
- Mas por que o cara não faria falta nenhuma? Não entendi. E a família dele? - Gustavo demonstra algum interesse pela teoria, o que renova o ânimo de Daniel.
- Família? Ah, vai à merda. Seria triste para meia-dúzia de pessoas, eu até confesso que sim. É complicado perder alguém próximo. Mas imagina quantas outras estariam livres da existência cretina dele. Dessa merda toda que ele deve fazer diariamente no trem, no trabalho, no bar, em toda a porra de lugar que ele vai, enchendo o saco de quem já passou o dia num escritório claustrofóbico e vai enfrentar mais algumas horas maçantes numa sala de aula refrescada precariamente por ventiladores de teto.
- É. Até que faz algum sentido.
- Pois é. Só ainda não sei como seria possível organizar um arquivo para identificar esse tipo de gente. São situações subjetivas, usei esse cara do trem como exemplo, mas me deparei com ele apenas uma vez. Seria preciso ter muita certeza sobre a sua ausência de importância, inteligência e capacidade de fazer o maior número de pessoas perder tempo com as merdas que pensa e faz - Daniel solta um suspiro de cansaço e satisfação depois da última palavra. Está extenuado. É a primeira vez que expõe a idéia para alguém. Porém, sente-se mais leve, isso é inegável.
- Tá, e a bebida? – Gustavo cutuca o amigo que ameaça cochilar pendurado na cadeira - Tô ficando sóbrio.
- Pois é. Parece que só o natu pode nos salvar - os olhos certeiros e cerrados de Daniel miram o uísque no barzinho encaixado no canto da peça.
- É. Antes de colocar em prática a tua teoria, vou procurar um guaraná na geladeira.
Quando voltava com a garrafa verde do guaraná da antarctica - porque ele é o que melhor casa com o uísque - que suava gelado, Gustavo viu Daniel escorado no balcão, roncando baixo. Serviu uma dose generosa de bebida, aumentou discretamente o volume do rádio, que antes cochichava, e bebeu vagaroso, sem a pressa de antes, ao som alucinógeno da Tábua de Esmeraldas.
Guilherme
- Que foi? - Gustavo desloca a cabeça e o olhar em direção a Daniel.
- Acabou a ceva! - olhos saltados de desespero.
- Puta merda. E agora? - a pergunta sai da boca de Gustavo, mas não é somente proferida diretamente a Daniel, ele busca uma resposta maior, quer uma explicação concreta. Porque ainda não está com aquela sensação de pança cheia e andando com dificuldade, o que determinaria o fim de um trago.
- É nessas horas que um de nós tinha que tirar uma porra duma carteira. Faz falta. Tamo ilhado aqui no sítio e não podemo nem ir até o centro.
- É foda...
- E agora, o que vamo fazê?
- ... - silêncio ensimesmado de dois bêbados amadores de vinte e três anos que não têm a cancha dos tios de quarenta e poucos, e bebem a cerveja com a sede daqueles que acham que vão morrer amanhã.
- Eu vou aproveitar então que eu e tu tamo bêbado já, e te falar sobre a teoria que eu formulei esses dias, quando andava de trem indo pra uni, e balançava pra cá e pra lá naquela dança suarenta e interminável que os passageiros executam à tardinha, superlotando aquela merda.
- ... - silêncio de consentimento contrariado, com as covinhas se formando nas bochechas e os ombros indicando que tanto faz se a teoria for contada ou não, porque vou esquecê-la assim que soltar a minha cabeça cheia de álcool sobre o travesseiro.
- Tá. Eu tava entre uma tia gorda, uma gostosa, que decerto ia pro prédio do direito quando chegasse no campus, e um idiota todo suado com cara débil. Manja cara débil? Assim, ó: com os olhos caídos e perdidos. Então, eu tava lá e esse retardado começou a forçar o tronco dele sobre as minhas costas!
Daniel segura Gustavo pelos braços e balança o amigo:
- Tá me ouvindo??? Tá me ouvindo???
- Continua, porra!
- Calma... Tô contando. A toda oportunidade que ele tinha, qualquer desvio ou curva efetuada no trajeto do trem, esse cara aproveitava pra me empurrar sobre a tia. Pra piorar, começou a contar uma história sobre um campeonato de futebol que ele jogou muito, e uma dor que sentira na perna esquerda, fruto da suposta perseguição desleal dos adversários à sua habilidade. Mas ninguém prestava a mínima atenção nisso. Queriam só ficar quietos e olhar para a janela e fingir que são normais. Aí eu virei bem de frente pra ele e olhei bem no olho daquele merda. Bem no fundo do olho dele, no fundo da insignificância da existência dele, de toda aquela coisa sem sentido que era a presença dele ali. E foi nessa hora que eu concluí, com todo o suor da minha camisa, com o sol na minha cara e o bafo da tia gorda me enjoando: aquele cara não precisava existir; o fato de ele estar no mundo não acrescenta em nada; em porra de nada nenhuma! - Daniel esmurra o balcão que o separa do interlocutor e amigo para enfatizar o discurso.
- Vai quebrar, porra. Te liga!
- Foi mal... foi mal. Eu ainda não engoli aquele imbecil. Mas, continuando, ele não faria falta alguma. Poderia facilmente ser abatido em um acidente, num assalto, situações que podem ser enfrentadas por qualquer um, das quais ninguém está livre, mas que serviriam também para eliminar essas bestas, e não somente enriquecer os bolsos de quem as articula.
- Mas por que o cara não faria falta nenhuma? Não entendi. E a família dele? - Gustavo demonstra algum interesse pela teoria, o que renova o ânimo de Daniel.
- Família? Ah, vai à merda. Seria triste para meia-dúzia de pessoas, eu até confesso que sim. É complicado perder alguém próximo. Mas imagina quantas outras estariam livres da existência cretina dele. Dessa merda toda que ele deve fazer diariamente no trem, no trabalho, no bar, em toda a porra de lugar que ele vai, enchendo o saco de quem já passou o dia num escritório claustrofóbico e vai enfrentar mais algumas horas maçantes numa sala de aula refrescada precariamente por ventiladores de teto.
- É. Até que faz algum sentido.
- Pois é. Só ainda não sei como seria possível organizar um arquivo para identificar esse tipo de gente. São situações subjetivas, usei esse cara do trem como exemplo, mas me deparei com ele apenas uma vez. Seria preciso ter muita certeza sobre a sua ausência de importância, inteligência e capacidade de fazer o maior número de pessoas perder tempo com as merdas que pensa e faz - Daniel solta um suspiro de cansaço e satisfação depois da última palavra. Está extenuado. É a primeira vez que expõe a idéia para alguém. Porém, sente-se mais leve, isso é inegável.
- Tá, e a bebida? – Gustavo cutuca o amigo que ameaça cochilar pendurado na cadeira - Tô ficando sóbrio.
- Pois é. Parece que só o natu pode nos salvar - os olhos certeiros e cerrados de Daniel miram o uísque no barzinho encaixado no canto da peça.
- É. Antes de colocar em prática a tua teoria, vou procurar um guaraná na geladeira.
Quando voltava com a garrafa verde do guaraná da antarctica - porque ele é o que melhor casa com o uísque - que suava gelado, Gustavo viu Daniel escorado no balcão, roncando baixo. Serviu uma dose generosa de bebida, aumentou discretamente o volume do rádio, que antes cochichava, e bebeu vagaroso, sem a pressa de antes, ao som alucinógeno da Tábua de Esmeraldas.
Guilherme
2 Comentários:
Muito bom o texto...
Com certeza essas figuras não acrescentam em nada no mundo...
Aliás só enchem o saco...
Abraço...
Pedro...
Gosto também de escrever contos. Meu blog anda meio parado, mas não está morto. Ainda busco um melhor formato para meus textos na web, porém uma coisa é certa: a internet não pode matar o texto. Temos apenas que nos reinventar!
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