quarta-feira, novembro 01, 2006

um dia

Acordou com a preguiça que recendia ainda de seu sonho. Acordou, mas não abriu os olhos. O relógio martela sua mente e avisa que já está na hora de levantar. Afasta as cobertas, lençol-edredon-cobertor e se arrasta até o banheiro. Cinza, que dia mais cinza. O banheiro de paredes mofadas, a estufa estragada. Molha o rosto e se arrepia com o gelo da água fedorenta. Arranha-se ao tentar se secar com a toalha felpuda - e deixa a peça. A mãe prepara o café, meu filho. Ele pega a xícara da mão pontilhada de sinais e vincos. Sua mãe está envelhecendo. Ele não se importa muito. Cava pungentes buracos no açucareiro e adoça o café amargo. Bebe num gole.

Logo está na calçada. A caminho do trabalho. Modula as passadas numa lentidão que lhe garanta um atraso de meia-hora. Sempre faz isso. Desde que conseguiu esse emprego como boy. Não sabe se é para provocar o chefe e ser logo despedido e finalmente fazer tudo o que sonha e deixar de ganhar os duzentos-e-quareta-e-quatro-reais-e-quarenta-e-dois-centavos muito dignos que eu lhe pago todo o mês. Mas quando chega ao escritório é sempre a mesma coisa. O chefe olha sua entrada com ódio, desaprovação. Um olhar de hierarquia superior, de contador-de-merda-que-acha-que-é-rico. Ele reza para que seja mandado embora. O chefe caminha em sua direção com passadas destoantes, já que é cocho, e diz que a vida pode não dar duas chances a uma mesma pessoa, por isso aproveite bem. Ele fica quieto. Por dentro explode feito vulcão. Mas sua face apenas assente ao conselho. Respira fundo e lembra que existem coisas boas no escritório.

Há Sofia. Ela e seu sorriso melancólico que só ele presta atenção; ela e suas roupas coloridas de combinações ultrapassadas; ela e sua pele clara e seus olhos negros. Só ele sabe que ela gosta de estalar todos os dedos das duas mãos de uma só vez, por isso as juntas grossas. Só ele sabe que ela pisca os olhos três vezes quando boceja. Talvez devesse contar isso pra ela, pensa. Logo desiste.

Falta pouco para o intervalo de almoço. Desce a escada do prédio e palmilha alguns metros da calçada quadriculada para pedir um cachorro-quente-com-salsicha-molho-batata-palha-ketchup-maionese-milho-e-só-isso-tio. Mastiga tudo no seco. Está poupando dinheiro para comprar um violão. Ele toca violão. Quando pode. Mas o instrumento que possui está velho, a madeira gasta, as cordas enferrujadas. Quer um violão pra tocar Los Hermanos, tocar Caetano Veloso, Chico Buarque. Não essas merdas que pululam nas rádios. Tudo pago, eu sei, fala consigo. Para estranhamento do tio do cachorro quente, que vira a cabeça e faz que não escuta.

Volta ao trabalho e recebe um envelope. Leva no banco e deposita pra mim, ordena o chefe. Leva-no-banco-e-deposita-pra-mim. É um filho da puta mesmo. Deve ser a conta da mulher dele. Ela é jeitosa. Tem seus quarenta anos, mas ainda mantém os traços do rosto impecáveis e o corpo em forma – de linhas conservadas e dignas. E casada com esse cocho. Vida injusta, sussurra. Vá entender?!

Deposita. Caminha. Trota. E quase corre para pegar o escritório aberto e não deixar pra receber só na segunda-feira, porque precisa ajudar lá em casa. Quando alcança a rua onde trabalha avista ainda da esquina a porta de ferro resguardada pela corrente grossa. Lamenta que ainda sejam cinco e cinqüenta e sete. Tô fudido!

No caminho de volta para casa modula as passadas numa lentidão que lhe garanta um atraso de meia-hora. Sempre faz isso. Principalmente quando promete pra mãe que antes do sol deitar atrás daqueles montes e antes de sua novela das seis começar, vou chegar com o rancho do mês. Não quer mais chegar. Senta no banco de uma praça qualquer. Pensa em Sofia e nos seus encantos platônicos. Pensa no chefe, aquele filho da puta explorador de merda. Pensa na mãe; e na decepção que vai causar quando chegar em casa amortecendo o passo para não acordá-la.

Guilherme

4 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

tu jah nao posto isto? lembro de ter lido...

ta bala...

11:58 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Muito bom o texto...
Quantos FDP desses existem por ai né...

Abraço !!!
Pedro Schenkel!!!

12:41 PM  
Blogger Leandro Luz disse...

Cara, isso é a realidade de muitos por ai...conheço umas figuras que passam ou passaram por isso. Já fui boy, é uma merda! Mais uma vez parabéns. Puta texto, vc escreve muito bem. Estuda na Unisinos com o Fábio?
É isso, Guilherme, mandando bem sempre. o Blog de vcs tá bala.
Abração!

9:55 AM  
Anonymous Anônimo disse...

bah... qntas vzs tive de corre pra pega os lugares abertos e fz os "favores" desses FDP´s... tah show, o textinho! pelo menos o kra tinha alguem a admirar...hehehe...abraço...

Pitt

7:34 PM  

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